quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Raízes

Se perguntarem por mim
Diga que eu parti
Que fui me enfiar no mato
Procurar minha raiz
Mas eu volto, hei de voltar
Trazendo as bênçãos de Iemanjá
Porque eu não sou daqui
Eu sou de lá, eu sou de lá

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O idiota

Ontem eu era um idiota
E o hoje, eu sou o que?
O idiota de amanhã
Entre o idiota de ontem
E o de amanhã
Há o caminho de uma vida toda
Com seus muitos erros e poucos acertos
E o objetivo de terminá-lo
Menos idiota do que quando o comecei
Não me censurem por ser um idiota hoje
Censurem-me por não ser menos idiota amanhã

domingo, 22 de dezembro de 2013

Presença

Você aí
Eu aqui
E teu cheiro
Em mim
E eu me sinto repleto
De ti
Longe embora tão perto
Porque tão dentro
De mim

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Pergunta mais velha do que andar pra trás

Entender não é difícil
Na verdade, é bem fácil:
“Não faças aos outros o que não queres que façam contigo”
Pode algo ser mais simples do que isso?
Princípio categórico, imperativo
Imediatamente evidente
Então por que fazemos o contrário?
Porque é tão complicado
Fazer dessa fraseologia vazia
Uma real filosofia de vida?

Sentimento ruim

Não me venha com essa
De me contar o que você fez
Faz ou deixa de fazer
Não quero saber de você
Não me diga que as coisas são assim mesmo
Com esse ar de superior benevolência
E que, afinal, é bom que assim seja
Já que não era mais pra ser
Nem diga que quer participar da minha vida
Como dois grandes amigos
Porque o tal do sentimento permanece vivo
Na nossa longa história
E porque depois de tanto tempo juntos
É absurda a indiferença
Que precisamos ser maduros
E encarar o fato de frente
Que o que passou, passou
E importa apenas o que restou da gente

Não esfregue sua felicidade
Que pelo visto vai muito bem
Na cara da minha saudade
Não me diga que está bem
Com esse olhar de piedade
Não preciso do seu vintém
Resta-me ainda dignidade
E eu sei mostrar desdém
Com um pouco de vaidade
Sei guardar rancor também
Sai pra lá com essa bondade
Porque por hoje, meu bem
Só tenha uma única vontade
Ver você sofrer também

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Fim

Como dói
Dar-se conta
Da perda
Do fim
Que não tem volta

E falta o ar
Com que respirar
E desaba o chão
Sob os pés
E não mais se vê
É tudo escuridão
Deixa-se de crer
Perde-se a fé
E a razão

Mas como só acaba
Quando termina
A gente continua
Nessa busca
Chamada vida
E, no final
Quem não espera
Encontrar
O que procura?

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Gadgets

Não saio de casa sem celular
Um Smartphone, claro
Não dirijo mais sem GPS
E, na faculdade, levo sempre o notebook
Em suma, nada faço sem meus Gadgets
E nunca deixo de estar conectado
Ah, que saudade da época que Gadgets
Era um relógio da Cássio
E um canivete!

Física política

Queria ser um elétron
Para ocupar dois lugares
Ao mesmo tempo
Sem me importar com limites corporais

Abaixo Newton
E sua mecânica antiquada!
Abaixo a física clássica!
Viva a física quântica
E a anarquia das partículas subatômicas!

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Carinho

Se o amor é uma coisa humana
O carinho é universal
Não há ninguém que não o queria
Nem que, ao recebe-lo, não o entenda
E, afinal, o que é o carinho
Senão uma forma diferente de amor?
É o amor sem teoria, em estado bruto
É o amor que se sente, e não que se diz
O Amor é ideal; o carinho é concreto, material
Do carinho, até as mais terríveis bestas gostam
Quanto mais eu, um pobre ser humano infeliz
Se o amor acabar, que o carinho nunca acabe!
Se o amor faltar, que o carinho nunca nos falte!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Fechando o ciclo

É chegada a hora
Hora tão esperada
De colocar os pés descalços
Nos caminhos da estrada
De enterrá-los, fundo
Na areia cálida da praia
De molhar a cabeça
Nas águas sagradas do mar
É hora de caminhar
De me perder de novo
Para alguém encontrar
Antes de voltar, renovado
Por outro caminho qualquer
Quer ir junto? Levo-te comigo
Vamos conhecer pessoas
Vamos rir e dançar à toa
Ter histórias pra contar
Porque é chegada a hora
A hora de ir embora
Com o coração tranquilo
Para encerrar esse ciclo
E começar outro
De alma lavada

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Considerações de um viajante

Na vida, há infinitas estradas
Tem pessoas que dão voltas e voltas
Em falso, sem chegar a lugar algum
Tem quem vá, certo de si, em linha reta
Acreditando, assim, conquistar o podium
Mas, no final, só conseguem se perder na própria meta
E, coisa estranha, sem deixarem de crer-se no prumo
Fazem cálculos geométricos, ponderam tempo e custo
Andam rápido, mas não olham para os lados
Se alguém fica para trás, abandonam-no, é cada um por si
Diferente desses, há aqueles que giram e giram e giram
E que encontram seu caminho justamente nos círculos
Que outros, os muito seguros, veem como descaminho
Eu pertenço a essa última categoria, a dos perdidos
Que gira, que se extravia porque quer, que sai da trilha
Que prefere seguir sem sentido, sem bússola
Sem mapa, ignorando as placas de aviso
Se existe ponto de chegada, nem todos o alcançam
Porém o certo mesmo é que existe caminho
Qualquer um, porque é preciso caminhar
É correto, portanto, dizer: caminhos, no plural
No infinitivo, porque o que importa é caminhar
Seja qual for o teu, ele jamais está pretraçado, predefinido
É preciso fazê-lo, um pouco sozinho, um pouco acompanhado
Porque o caminho se faz no caminhar, em ato
Não há certo, nem errado; do bem e do mal quem sabe é você
Se errar, ou mudar de ideia, volta, retoma, revoluciona-se
Sem medo, sem culpa; vá com calma, contemple, tateando com o coração
Aprecie a paisagem, porque a vida é uma só, e é breve
Então, divirta-se e aproveite a viagem

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Ler um livro é como viver um romance

Ler um livro é envolver-se pessoal e emocionalmente
É uma espécie de namoro, de conúbio
Que, ipso facto, tem seus altos e baixos
Como qualquer outro relacionamento
De início, nos damos de bom grado
Com prazer, descobre-se as páginas
A leitura flui, rápida, apaixonada
O entrecho, misterioso, cativa
O leitmotiv parece especial, único
Os personagens são interessantíssimos
Depois, lá pelo meio, cansa-se
A leitura arrasta-se, quase obrigada
Não há mais tesão, apenas compromisso
Começa a se perceber problemas antes não atinados
Bem da verdade, se os cria, por implicância mesmo
Esforça-se por continuar, força-se a permanecer lendo
Para, abandona, retoma, para novamente
Como se se não pudesse deixar as coisas pela metade
Mal resolvidas, inacabadas
E, entre tapas e beijos, brigas e arroubos de paixão
Chega-se ao ponto final
Este, assim como em toda história de amor
Pode ser traumático ou sereno
E a separação pode carregar mágoa ou afeto
Mas sempre, inevitavelmente, chega-se ao fim
De modo que se está livre para ler novamente
Um outro livro, prenhe de novas aventuras

A bunda

Das redondas e empinadas
Diz-se que são calipígias
Perfeitas carnes de Vênus
Mas é as grandes e gordas
Que o vulgo mais elogia
Desde que tenham tônus
Embora as fofas e macias
Boas de esmagar com as mãos
Estejam também entre as preferidas
Sejam brancas ou negras
Melhor ainda quando morenas
As magras, de delicada silhueta
Também têm seu charme
São como maçãs ou peras
Tenras, dão água na boca
Vontade louca de morder
Ah, desejado pedaço de carne!
És a quintessência da fartura!
Ah, louvada seja a bunda!
E como abunda, como abunda!

Do futuro

A vida não deve ser somente a rudeza
Do pão suado que se tem que ganhar
A vida deve ser o livre gozo da beleza
Que dá a natureza sem nada cobrar

Tenho esperança de que num belo dia
Desses cálidos, iluminados de domingo
Quando tudo fará novo sentido na vida
Seremos capazes de compreender isso

Amaremos por que é feliz saber amar
Nada de egos e ismos tão mesquinhos
Nem da morte atemorizar-nos sozinhos

Nada de angustias fúteis a nos acossar
Nem de sentir-nos assim, só e perdidos
Amaremos apenas, porque é feliz amar

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Lá vai um bobo

"Lá vai um bobo!"
Dizem as más línguas.
Ele sorri a torto e direito,
Cumprimenta a todos,
Fala consigo mesmo,
E - o cúmulo do absurdo -,
Canta e dança na rua!

É um pobre coitado,
Não sabe da maldade do mundo,
Não vê ruindade em nada,
Nem malícia em ninguém.
Unas acham graça,
E dele fazem troça,
Outros se condoem,
Como se se condói de uma criança,
Inocente e desemparada.
Mas quando ele passa,
Todos apontam e dizem:
"Lá vai um bobo!"

Por fim, escarnecem,
Sorriem o sorriso dos altivos,
E ao bobo dizem:
"A mim ninguém engana!
Contra a maledicência de todos,
Eu os maldigo por antecedência!
Estou sempre preparado, precavido;
Ora, se o mundo todo é-me inimigo,
Ando sempre desconfiado,
Pronto a dar o troco."

Mas o bobo nem dá por isso;
Segue pelo mesmo caminho,
A cumprimentar de graça,
A sorrir sem motivo,
A cantar e dançar e sozinho;
Mas um dia todos dirão:
"Lá vai um bobo!
Um bobo de bom coração,
Um bobo bom e feliz."

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Fracasso / Vitória

O fracasso ou a vitória
Uma linha tênue
Uma corda bamba
O fio de uma lâmina
De um lado a glória
Do outro a infâmia
Espada de Dámocles
A colecionar cabeças
E são sempre os inocentes
Os primeiros a perdê-las

domingo, 24 de novembro de 2013

O corpo

O corpo
De cada qual, o quinhão no mundo.
A única coisa que se traz na chegada,
E se deixa na partida.
Do ponto de vista, é o ponto;
Substrato de todo ser.
Ao mesmo tempo que comunica,
Isola, separa - é muro,
Que entre o eu e o mundo se levanta.
O que veem estes olhos,
Que a terra um dia há de comer,
Ninguém nunca poderá ver.
E se alguma vez é dado saber de si,
Dificilmente, do outro,
Se sabe alguma coisa com certeza.
Alguém uma vez disse,
Que cada um sabe a dor e a delícia,
De ser quem se é.
Mas quão triste não é,
Não se fazer entender;
E não conseguir sentir,
Na pele, a dor e a delícia alheia.
Eu queria rasgar este corpo,
Me dissolver no outro,
Sentir com a sua mão,
Ver com os seus olhos,
E beijar com a sua boca.
Ser contigo, ser com todos,
Sem corpo, um só.

Estou aqui pra brincadeira

Daquele que faz as coisas de forma bem feita,
Que leva a sério o que faz,
Diz-se que “não está para brincadeira”.
Ora, nesse sentido,
Não se sabe em que se diferencia
O trabalho do ser humano
Do da máquina,
Quando, na verdade, o que nos caracteriza,
É justamente a poiesis grega,
Lúdica e criativa por natureza.
Criar e fazer é, necessariamente, ter prazer.
Por isso, contra esse saber corrompido, eu digo:
Sim, eu estou pra brincadeira!
Sim, eu vim ao mundo a passeio!

sábado, 23 de novembro de 2013

Clara

Não se avexe, não
Branca mais preta
Mineira d’alma africana
De sangue carioca
E ginga baiana
De pés caiçaras
E coração sertanejo
Embora não foste mãe
Deixaste uma nação inteira órfã
Quando ainda tão cedo
Por arcanos do destino
Partiste deste mundo
Deste Brasil tão mestiço
Que cantaste com teu canto
Que encantaste com teu sorriso branco
Que comoveste com teu pranto
Mas a luz que a teus filhos deixaste
Essa clara claridade
Clara guerreira
Não se apaga jamais
Quando tu cantas
Canta também a esperança
A profissão do povo brasileiro

O mal do século

Vejo o celular
Só uma mensagem
É da operadora
Penso em fazer aquela ligação
Prometida há meses
Quem sabe depois

Checo a caixa de e-mail
Só me chegam cartas automáticas
Geradas por computador
Ofertas de produtos
Oportunidades de quitar aquela dívida
Às vezes até me cumprimentam pelo aniversário

Quanto à caixa de correio, nem me dou ao trabalho
Há tempos que por lá só chegam contas
Boletos, faturas de cartão
Chegam também livros
Mas livros não são pessoas

Procuro então no Facebook
Idem, nenhum contato
Paro para ver as pessoas interagirem
Constato, com horror, que eu virei uma espécie de voyeur
Satisfeito a observar as relações alheias
As pessoas parecem estar felizes
Pejadas de vida e de amor
Cada vez mais emocionalmente próximas

Decido sair
Me escoro no balcão do bar
E fico a olhar em volta
Risadas, gestos, beijos, abraços
Comemoram, juntos
A alegria de estar vivo
Tomo meu pileque
E volto para casa
Quem sabe um filme

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O dia

Amanhã é o dia
Amanhã é o grande dia
Porque todo dia é grande
Para quem que crê
Que toda manhã traz sempre um novo dia
Então, para o novo, prepare-se
Como se amanhã fosse o dia
Como se amanhã o grande dia fosse
Porque todo dia não é mais nem menos: é grande e é novo.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Dilema

Eis o dilema de hoje:
Fazer de tudo um pouco, mas não ser bom em nada
Ou especializar-se numa única cousa, fazendo-se bom nela
Ao preço de manter-se cego, ignorante e alienado a tudo o mais?
Aceitar a condição de pequena peça
Desimportante por si mesma, mas indispensável ao todo
Cujo funcionamento se concebe como uma máquina
Ou pretender, ainda que condenado de saída ao fracasso
Tal como os heróis trágicos dos mitos antigos
Abraçar o mundo todo, e tudo que nele existe
Com esses pequenos e tíbios braços de humano?
Difícil dilema, pois se, de um lado, tudo aquilo que chamamos de cultura é necessariamente bom
Quer-se, legitimamente, aproveitar de todo este legado, como é de direito
Embora, de outro lado, se cada um de nós se satisfizer em ser um diletante
Correríamos o risco de botar freio nesse processo, de empacar e não ir além
Em suma, ser tudo é não ser nada, e não ser nada é ser tudo
Como resolver essa dialética?
Critica-se hoje a especialização burra, advoga-se a interdisciplinaridade
Mas, na prática, fazemos tudo ao contrário
Aquela erudição culta, aquele saber enciclopédico
O traço distintivo do tempo das luzes, não existe mais
Um dia matamos Deus, só para nos colocar em seu lugar
Agora matamos a nós mesmos, e, caídos, tornamo-nos fatalistas, niilistas, cínicos
Tal como as peças de uma máquina seriam se tivessem a faculdade de pensar
Eis aí outro dilema fundamental, que se não resolvido, não se resolve o primeiro: como colocar, no lugar dos caídos humanos deificados
Humanos humanizados?

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Tal vida, tal memória

Tu já paraste para pensar
Que tipo de memórias quererás ter
Quando a velhice avizinhar-te?
Não queres que teu melhor amigo
Seja um super-herói de desenho animado, não é?
Ou de vídeo-game, que seja
Nem que as aventuras que tenhas vivido
Tenham se passado em filmes hollywoodianos
Num sábado monótono (para não dizer solitário)
Muito menos que tuas histórias de amor
Tenhas vivido na pele de personagens sofríveis dalguma novela besta
Quando chegar a hora da morte
Que passará em revista pela tua cabeça?
Tu, sentado ao sofá, assistindo à tevê?
Mas eu não lhe digo para que imites a arte
Se é que é possível dar tal qualidade
A esse monte de bobagem televisiva
Que nos empurram diariamente
Não; exorto-te para que faças arte!
Para que vivas a arte!
Para que desatines dias desses!
Para que te percas por aí, sem norte!
Em lugares que nunca estiveste!
Fazendo coisas que nunca imaginaste!
Beijando bocas que nunca beijaste!
Acredite em mim quando lhe digo que é desse tipo de memória
Que quererás ter na hora da morte
Se não for para tê-las
Se for para ruminar essa existência bovina
A vida, de que vale?

Família desfeita

Entre uma tarefa e outra que faço
– Uma roupa que lavo,
Um chão que esfrego,
As galinhas que alimento
Algumas roupas que remendo –
Me pego pensando em você
Lembrando o que foi, e o que haveria de ser
Mas que o destino fez questão de frustrar
Lembra-se da primeira vez em que nos vimos?
Você todo tímido, desenxabido
Faltou-lhe coragem para me tirar pra dançar
Eu percebi, mas também não sabia o que fazer
E não é que depois de muito ensaio
Depois de muitas olhadelas de soslaio
A gente resolveu arriscar uns passos acabrunhados?
Você estava tão embraçado
Que eu perdi as contas de quantas vezes meu pé foi pisado
E eu nem senti, porque não conseguia parar de olhá-lo
Toda boba, admito
Éramos jovens, inocentes e esperançosos
Apaixonar-se era fácil
Mas agora isso
Este teu sumiço
De novo só tem feijão no fogo
E eu, o que devo fazer?
Você andará por onde?
Tinha que se meter na cidade grande?
Tanto pior no estrangeiro!
Lá longe, tão longe que eu não saberia dizer quanto
Lá se vai um ano – um ano inteiro! –
Sem notícias, sem saber teu paradeiro
Terá arrumado uma nova família?
Terá sido preso?
Ou pior, morto?
Onde estará você homem de deus!
As crianças estão crescendo
E a situação piorando
Tenho pensado em deixar o vilarejo
Aqui não há mais nada para nós
Não há mais terra, nem trabalho
Só miséria e sofrimento
Será que você estava certo desde o começo?
Mas eu tenho medo, eu tenho medo
Que será de nós, querido?
Que será da nossa gente
Que dia a dia, inescapavelmente
Perde o pouco que tem?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Cavalgada

A pélvis gira, elíptica
Em torno de seu próprio eixo
Voluptuosa, sinuosa
Como o balé de um tornado
Puxando, sugando, lançando tudo aos céus
As palmas das mãos apoiadas sobre o peito
As unhas prontas a agarra-lo
Os olhos virados, a cabeça inclinada
Algumas madeixas, úmidas, se apegam à boca
O queixo cai, trêmulo, em êxtase
Pelo ricto dos lábios escorre um fio de saliva
A pélvis freme, sôfrega, convulsiva
Em contrações espasmódicas
Vai para frente, e volta
Sobe e desce, não se decide, rebola
Para, recomeça outra vez
Depois se contrai, se contrai, com força
Aperta, aperta, até não poder mais
Até que enfim solta, repousa
Junto com um gemido
De ai

Ode à mediocridade

Longe de mim querer carregar o fardo dos eminentes,
Dos notáveis, dos super-homens nietzschianos;
Vistos com ciúmes e respeito, misto de inveja e enaltecimento;
A vida inteira chamados a prestar contar sobre seus atos,
Menos pelos outros do que por si mesmos;
Implacáveis, constantemente ocupados com seus legados,
Mas solitários, abandonados à própria grandeza.
Felizes aqueles que mantêm suas expectativas baixas;
De quem não se espera nada além da média;
Que podem dar-se ao luxo de errar sem vergonha ou culpa;
Que não precisam provar a todo o momento a dignidade de sua posição;
Que ao invés do mundo aos seus pés, têm ombros emparelhados ao seu lado;
O que me interessa é ser apenas uma pessoa normal, com seus erros e acertos;
Apenas mais uma entre outras tantas, anônimas na multidão;
Medíocres, mas satisfeitas.

Nunca mais

Quando acordo pela manhã
A sua metade da cama ainda está arrumada
Acostumei-me a dormir só de um lado
Mas seu travesseiro está sempre nos meus braços
Ou entre as pernas, ou sob o peito, comigo abraçado

Quando vou ao banheiro escovar os dentes
Vejo uma única escova que sob a pia jaz solitária
A sua, que com a minha fazia um par, não está mais lá
E eu noto que agora me habituei a fechar o tubo da pasta
Agora que não tem mais importância

Quando sento à mesa para o desjejum
Sirvo somente uma xícara de café, amargo
Por mais que eu me esforce, ele não fica como o seu
Do outro lado da pequena mesa, à minha frente
Sua cadeira permanece vazia, imóvel, silenciosa
Quem sabe se na mesma posição em que você a deixou?

Quando vou sair para trabalhar
Penso em deixar a porta aberta, para o caso de você querer entrar
Mas depois lembro que se você me entregou a chave
Foi para nunca mais voltar
Por via das dúvidas, deixo a chave dentro do vaso de lírio
Ou sob o carpete que diz "bem-vindo"

Quando chego em casa
Depois de um dia de trabalho – inútil, mecânico, absurdo
Tento abrir a porta de supetão, sem a chave
Como se você estivesse lá, mas não, você não está
E ainda que eu tocasse a campainha de nada ia adiantar

Só o seu pequeno jardim na sacada ainda resta
Mas não importa o quanto eu regue as suas plantas
Elas continuam a murchar, a perder o viço
Nunca mais a sua orquídea preferida deu uma só flor sequer

Nunca mais alguém conversou comigo através da porta do banheiro
Nunca mais coloquei o colchão na sala para assistir a um filme
Nunca mais contemplei o por do sol da sacada, fumando um baseado
Nunca mais calcei o seu chinelo porque não conseguia encontrar o meu
Nunca mais...

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Instante

Este tempo
Não o de ontem
Nem o de amanhã
Mas o de hoje
De agora
Deste exato momento
Tem gosto de morte
Tem o ruído do silêncio
Tem o canto do cisne
Só que mudo
Ninguém fala
Tampouco ouve
Nem um sussurro
Nem um único murmúrio
É sepulcral
Como o túmulo
Até o coração para
Em suspenso
No vácuo
É a plenitude
O eterno absoluto
Que acontece se se move?
Que vem depois
Quando o instante
Põe-se em movimento?

Sussuros

Há dor
A-dor-
ah!
A-ma-
nhã

verá?

Depressão

Depressão não é tristeza
É um mal insidioso
Que da gente se apodera
De vagar, aos poucos
Sem dar bandeira
É como uma doença silenciosa
Espalhando-se pelo corpo
As ideias envenenando
Os nervos paralisando
Obscurecendo a mente
Haurindo a energia
Enquanto não se se dá conta
Ela vai tomando corpo
A feição monstruosa
A horrenda face
Do medo e da angústia
O que resta é um corpo inerte
Sem vida, pura apatia
À agonia entregue
De ser prisioneiro de si mesmo

Tumulto

Certos momentos
De extrema felicidade
Ou de fundo sofrimento
Me acomete uma doida vontade
Uma explosão de sentimentos
Que se propaga pelo corpo
Como uma tempestade
Que me invade, em ondeadas
Provocando um tumulto confuso
Nesta alma já atormentada

Tenho vontade de gritar
Aos quatro ventos
Tão alto e tão forte
Que fizesse a terra chacoalhar
Como um abalo sísmico
Que deslocasse seu eixo
Que abrisse as vagas do mar
E no seu doce leito
Eu pudesse descansar

Vontade de correr a eito
Até os músculos estourar
De brincar com o vento
Nas asas de um pássaro
Livre, por aí a voar
E a um só tempo
Em todo lugar estar

Ah, vontade de abrir meu peito
Com a unha dos dedos
E mostrar a todo o mundo:
Vejam, aqui bate um coração!
Que sofre, que tem medo
Que sente sede de paixão
Vejam como ele bate forte, rijo!
Como sangra em borbotão!
Vamos, dê-me sua mão
Está sentindo-o?
Pois eu não

Retirante

Trajando andrajos imundos
Vagando por estradas sem rumo
Uma procissão de miseráveis
Calados, abatidos, macambúzios
Trabalhadores, camponeses, sem-terras
Homens que nada tiveram
E, não se sabe como, perderam tudo
Mulheres lavadeiras de trouxas na cabeça
Crianças de ventre saliente
E mãos nodosas de adulto
Trazem os corpos cobertos de poeira
Que, dir-se-ia, valem-lhes de segunda pele
Sobre a primeira
Prematuramente envelhecida
O pó substitui a roupa quase inexistente
Meu Deus, são famílias inteiras!
Acostumadas àquele sol inclemente
Às agruras daquela terra
Seca, dura, exangue
Que com lágrima e suor é lavrada
Eles caminham, em meio a mandacarus
Umbuzeiros e xiquexiques
Esperançosos de que haverá futuro
Nas ruas agitadas da cidade grande
Tratar-se-á de esperança, de fato
Ou seriam como uma manada
Agindo por puro instinto?
Fugindo da morte que lhe acossa
Afinal, e isso importa?
Se na selva de pedra serão também a caça
De homens-fera sem escrúpulos?
Não, a esperança que sustentam
Não está na ida
Antes está na volta
Crentes de que, um dia,
A seca há de ir embora
E a sua terra outrora sem vida
Haverá de renascer como a aurora
O cacto florescerá
A macaxeira crescerá
O gado engordará
Então o retirante irá voltar
Quando o sertão fizer-se mar

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Filosofia antiga

Não sejas como um caracol
Que quando tocado
Foge entocando-se em sua concha
Não sejas como um tatuzinho
Que quando se sente ameaçado
Em torno de si mesmo se fecha como uma bola
Não sejas como certas espécies de besouros
Que, para desbaratar possíveis predadores
Paralisam-se e fingem-se de mortos
A qualquer um que se acerque
Não sejas como um porco-espinho
Que fere com mil aguilhões
Quem só queria sentir-te o corpo
Dar-te um abraço
Estar por perto
Juntinho
Sejas como um cardume de peixes
Como uma matilha de cães
Uma manada de elefantes
Abelhas numa colmeia
Tenha perto teus semelhantes
Não te escondas
E não tenhas medo
Da solidão

domingo, 10 de novembro de 2013

Memória

Cansei de brigar com você
Desisto, jogo a toalha
Compreendo agora o seu poder
Você me possui, admito
E conforme o tempo passa
Isso fica cada vez mais claro
Você, dona Memória
É senhora do meu destino
Por isso, eu lhe imploro:
Não se vá, fique comigo!
Sem você, eu não sou nada
Sem você, me sinto abandonado
Não me deixe neste presente sozinho
Não me deixe esquecer o passado!
Que parece mais e mais distante
Como a costa se vê do navio
Sumindo na linha do horizonte
Os traços então se confundem
Os conteúdos tornam-se indistintos
E já não mais se sabe o que é o que
Que aconteceu naquele dia fatídico?
Quem dera o primeiro beijo atrevido?
Terá sido eu ou terá sido ela?
É tão fraca a luz que vem da vela
A bruxulear no canto da sala
Ah, senhora Lembrança!
Não me deixe esquecer os sorrisos
Tão lindos que vi por essas andanças
São tantos os rostos queridos
Que até da memória se vão
E já não importa
O quão fundo eu vascoleje a cachola
Eles agora não passam de um borrão
Eu não posso vencê-la, Memória
Mas, por piedade, por compaixão!
Não tire de nós, humanos sofridos
O pouco do pouco que nós temos
No final, tudo o que nos resta é a memória
Perdê-la seria como não ter vivido
E de que vale passar por tudo isso
Se não for para depois contar a história?

sábado, 9 de novembro de 2013

Poesia ao poetinha

Ah, meu poetinha!
Só tu me compreendes
Tu, que morreste de amores
E de amores viveste
Ensina-me como ver alegria
Num mundo triste como este

Agora quem pergunta sou eu:
Que lhe disse a poesia?
Que viu você por trás do véu
Que dos vivos a verdade esconde
Como a noite esconde o dia?
Afinal, do alto deste céu
Que lhe parece a vida?

Ensina-me a arte que dominaste
Com exímia maestria
A de fazer da dor, poesia
De prantear o amor que se ia
Sem num só instante
Perder a fé no outro que viria

É desta qualidade
Tu sabes, poetinha
Que se faz um verdadeiro vate:
Ver na tristeza sua bela face
E dela fazer-se amante
Sem deixar o riso de parte
Não é desta espécie de sabedoria
Da qual é feito o vate?
Então ensina-me, poetinha
Ensina-me a tua arte!

Tu, camarada
Que tantas alegorias viste no mar
Olha pela minha nau a deriva
Que, mesmo sem saber velejar
O desconhecido infinito singra
Atrás de um lar, atrás de paz
Tendo como único guia
As palavras sem par
Do meu poetinha camarada
Vinícius de Moraes

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Soledade

Soledade é o nome da minha esposa
Com quem nunca fui perdidamente apaixonado
Mas junto da qual o acaso levou-me a unir em casmento
Com seus altos e baixos, suas alegrias e tristezas

Mas Soledade é também o nome da minha amante
A quem vez ou outra me entrego loucamente
Em arroubos febricitantes de desejo
Até quando, vendo-os satisfeitos, volto a recusá-la
E novamente sinto que a odeio

Ah, afinal, Soledade é o nome da minha companheira!
Ao lado de quem envelheço
Enfrentando o ramerrão da rotina rotineira
Sempre em sua dedicada companhia
Tendo a certeza de que ela não me abandonará
Até sermos dois velhinhos bobos
Que já foram apaixonados
Que já se odiaram
Mas que nunca se separaram
Porque, no fundo, se gostam
Mais até do que imaginam
Até que o dia da morte leva tudo isso embora
E de toda nossa história
Restam apenas duas covas
Sobre as quais registra-se o seguinte epitáfio:
Juntos em vida
Juntos na morte

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Lágrima

Ó, inelutável lágrima!
Borbota da fronte
Vinda das funduras da alma
Brota como uma fonte
De águas claras e calmas
Rola pelos vales e montes
Do rosto, a água salobra
Carreando a dor para longe
Indo desaguar na boca
Que até a última gota
Do mar consome

Ó, irreprimível lágrima!
Às vezes intempestiva
És como uma avalanche
Que aos borbotões se precipita
Outras, és doce e branda
Como rio de águas mansas
Brincando com os vincos da pele
Qual alegre criança

Ó, inevitável lágrima!
Que nas pálpebras se equilibra
Indecisa se ao abismo se atira
Ou se se recolhe, tímida
Para o âmago de onde saíra

Vai, lágrima
Escorra
Pelo rosto
Se lhe compraz
Deixa, na boca
O salso gosto
Que me é contumaz
Vai, lágrima
Corra
Vence o desgosto
Como só tu é capaz
Lava a alma
Redobra a fé de novo
E meu coração preencha de paz

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Sina de poeta

Ah, se não fossem as palavras!
Em que solidão muda eu padeceria?
Sem meios de exprimi-la,
Não haveria como expiá-la;
E, sem compreendê-la,
Como aceitá-la?
Curioso paradoxo este da solidão,
Que precisa ser comunicada,
Ainda que seja a um papel em branco.
Será um pedido de socorro,
Como uma garrafa lançado ao oceano?
Ou uma forma de ver,
Espécie de espelho da alma,
Aquilo que à felicidade escapa?

Sermão de Bienvenu Myriel (Ou: por onde a falta passou?)

Quem sois vós?
Que se arvora em juiz
Sem deixar de ser parte
Apoiando-se no nome de falsos deuses
Para acusar de erro, de vilania
Para cobrir de infâmia e de opróbrio
Um semelhante a ti
Que sofre, que chora
Que tem medo
Que sente frio e fome
Enquanto você refestela-se
Açambarcando a graça que Deus deu
A todos nós?

Quem sois vós?
Para falar da ignomínia alheia
Enterrado até os pés
Como estás,
Na lama mais fétida
Que preenche o fundo poço
Da alma humana
Capaz, sem pestanejar
De cometer atos
Tão ou mais perversos
Do que teu irmão
A quem acusa de inimigo
Por não compartilhar contigo
De sua suposta humanidade?

Quem sois vós?
Que se crê senhor da razão
E do dono da vontade
Que assoma soberbo
No pedestal da História
Tendo sangue aos teus pés
Ocupado demais em condenar
Para olhar a si mesmo
Comprazendo-se em apontar o dedo inquisidor
Sujo, besuntado de iniquidade
Na fuça dos humilhados
Dos oprimidos e derrotados
E ainda afirmar-se justo?

Será que não vês nele
Naquele que recusa
Naquele que fora
Desde o berço, privado
Vilipendiado,
Tua própria imagem
Falsa e hipócrita
Refletida em seu olhar
De animal acuado?

A felicidade que roubas dos outros
Restitue-se-lhes em humanidade
E concede-lhes a força
E o direito sobre o Futuro
Que eles ainda hão de herdar
(Ou seria tomar das mãos de teus filhos?)
E, então, de cabeça altiva
Caminharão sobre teu cadáver
Despido, esquecido
Sem direito sequer a uma lápide
A uma nota de rodapé
Que eternize seu nome
Senão como de fato fora:
Mau, indigno

Há rosas no jardim

Em torno de ti
Mágoa, que habita meu coração
Eu construo uma cerca branca de saudade
Cerco de mimos e cuidados a sua lembrança
Lavro a terra com a carência de sua presença
Semeio-a com a falta pungente que me fazes
Cultivo com carinho o jardim da sua ausência
E as rubras rosas que dele nascem
Eu chamo de solidão

Antinomias

Vá entender esse mundo maluco!

Onde muito sobra
E tudo falta

Onde há fartura
E a satisfação é escassa

Onde a felicidade é paga
Mas a agrura é dada

Onde a lei impera
Só que a injustiça é a regra

Onde reina a miséria
Em meio a tanta riqueza

Onde a feiura é beleza
E a beleza não é bela

Onde o forte goza
Enquanto o fraco chora

Onde quem tem manda
E quem não tem apanha

Calado, cabisbaixo
Alguém me explica
Porque tudo caminha
De cabeça para baixo?

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

É hora

Bora, que é hora
Que a hora é agora
Vam’bora, fazer a hora
Que ela é todinha nossa
E o que não nos falta é bossa
Pra pintar a cidade de rosa
Ora, então simbora, rapá!
Acorda, não perde a hora
Que nosso bloco vai passá
Em pé, sem demora
Pois o mundo dá volta, camará
Você mais eu, mundo afora
Deixa o outrora pra lá
Que já já a história vai começá
Bora, simbora
Amanhecer numa nova aurora
Canta, ama, brinca, goza
E se quiser, chora
Só não se esquecer vá
Que tudo melhora
Que tudo há de melhorá
Pode acreditá
E só quem viver verá!

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Em tempo

Enquanto o mundo não acabar
Enquanto nós não desistirmos
Enquanto os sonhos não morrerem
Haverá tempo - de sobra -,
E nunca será tarde demais

Anda

Levanta a cabeça
Firma os pés no chão
Inteiriça a espinha
Aquieta o coração
Põe no rosto um sorriso
Crispa a palma das mãos
Mira o horizonte
Respira fundo
E anda
Anda
Anda...

O grito

Parecido com um eco ao contrário,
Vem num crescente, avolumando-se,
Ao invés de estiolar-se no horizonte;
Preenchendo os cânions das entranhas,
Rimbombando pelas paredes da garganta,
Forcejando para sair pela boca cerrada,
Que, quase sempre, lhe fornece resistência.

O grito quer explodir, como um vulcão,
Derramar-se do lado de fora do corpo,
Invadir o mundo como um tsunami,
Arrastando tudo para bem longe.
Quanto mais se represa o grito,
Mais violentamente ele investe contra a barragem,
E mais e mais força acumula para a investida final.

O grito não pode ser contido indefinitivamente,
Ele é como uma dessas forças elementares da natureza;
Podemos tentar prever seus abalos sísmicos,
Minorar suas consequências devastadoras,
Mas jamais assenhorar-se completamente de seu poder.
Ele será sempre a premissa newtoniana do mundo humano;
A garantia de que as coisas permaneçam em movimento,
Mas que mudem de sentido quando necessário,
Mantendo o nosso universo em permanente expansão.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Em pé

Se não der
A gente tenta
De novo
E de novo
E de novo ainda
E quantas vezes
For necessário
Se cair
A gente levanta
Ginga
Samba
Anda
Se se perder
A gente volta
Do começo
E tenta caminhos
Diferentes
E outros
E mais outros
E quantos houver
Só não seremos
Culpados
Por não tentar
Afinal
Quem pode ser
Culpado
Por tentar?

O trabalho do amor

Amor não se ganha,
Antes se conquista
Amor não é de graça,
Porque não é uma dádiva divina
Não desce dos céus
Mas se eleva do chão
É fruto de mui duro trabalho
Como o camponês que se obstina
Na terra que dia-a-dia lavra
Para dela tirar o fruto
A comida, que o alimenta
Tal como o amor
Verdadeiro alimento da alma
O amor pode ser oferecido,
Pode ser dado
(e perdido)
Mas nunca sem esforço
Ele não acontece, assim, ao acaso
Porque o amor é resultado
Muito mais do que começo
É como um diamante bruto
Precisa ser lapidado
Pelas mãos pacientes de um joalheiro,
De um artífice habilidoso
Pelo amor se luta
E vencer não é o mais importante
O importante é tentar
E nunca desanimar
Se você ama
Não desista
Se empenhe
Persista
E, um dia
Há de vir à luz
Uma criança
De nome amor

Em tempos de Esparta

Você é partidário da força como direito
Acha que lá fora vige um estado de natureza
Infunde temor e confunde-o com respeito
Está aqui para ganhar e não para perder
O poder é-lhe a medida da felicidade
Quanto a mim?
Eu sou amante da verdade e da beleza
Interessa-me as artes e a filosofia
A minha parte quero em paz e amor
Sou um cidadão ateniense em tempos de Esparta

domingo, 27 de outubro de 2013

Elogio ao amor romântico

Estão tentando aposentar o amor romântico
O amor é burguês, dizem uns
O amor é improdutivo, dizem outros tantos
“Eu luto, não amo”
“Não há tempo; primeiro a carreira, depois quem sabe”
É o que dizem os jovens de hoje
O amor é fútil, é piegas, é idealista, é opressor, é falso
Amor? Só se for o próprio
Talvez pela humanidade, nunca por um indivíduo
Amor por princípio, não por sentimento
Amor racional, amor interessado
Amor desencantado, pós-moderno...
Mas eu quero acreditar que o amor ainda existe
O amor romântico, sentimental, tolo, puro
Amor digno de pena, trágico e cômico
Amor que rime com dor
Amor à primeira vista
Amor que não pede nada em troca
Amor sem possessividade, sem egoísmo
Amor que não reclama, que aceita
Amor criança, ingênuo
Amor que espera, paciente
Que sofre, sem remorso
Porque para ele não importa o tempo
Tem a eternidade para si
Para o amor dá-se sempre um jeito
Ele basta-se, é fim em si mesmo
Amor solitário, platônico
Amor condenado, mas satisfeito
Amor de bom grado abnegado
Amor que só quer amar
Ainda que não seja amado

Ansiedade

A ansiedade, esse desassossego interior
É como uma luta que se trava consigo mesmo
No mais íntimo do ser
Pela posse do corpo e da mente
Se por fora mostra-se a razão no controle
Por dentro, exércitos de paixões digladiam-se
Dilaceram fragorosamente o espírito
E é possível senti-los, fisicamente
Movimentando-se, batendo-se,
Comendo as entranhas, liquefazendo as tripas
Cá dentro reina o caos, a confusão
Lá fora, a aparente tradução da ordem
Porque o mundo não espera
Espera que a vida siga
E as coisas sejam feitas
Quem ganha a batalha responde pelo estado de saúde mental
Embora a razão esteja em vantagem na maioria das vezes
Há horas que ela nada pode fazer face ao avanço da ansiedade
Ainda que saibamo-la irracional
A ansiedade é uma expectativa que não cessa
Que com nada se satisfaz e a tudo deseja
Mesmo que do quê não tenha exata certeza
É a espera por sabe-se lá o quê
É a angústia do devir
E o atestado da própria impotência
É um não sabe se vai
Ou se fica
Se deixa ir
Ou se luta
É um querer fazer
Aconteça e não acontecer
É o medo do futuro enrijecendo os nervos
Embaçando o pensamento
Esmorecendo a vontade
É parte da triste condição humana
E seu parco poder sobre a ordem do mundo
Sua exígua previdência, sua mísera potência
Sua inconstância e insegurança intrínsecas

sábado, 26 de outubro de 2013

Os olhos

Que segredos antigos, imortais, esotéricos, guardam esses olhos fascinantes e misteriosos, olhos de esfinge?

Que oceanos impenetráveis, selvas luxuriantes e montanhas majestosas escondem, como continentes virgens, intocados pela mão humana, esses olhos felinos?

Olhos de Monalisa, meio animais, meio angelicais, situados além do bem e do mau, acima do céu e do inferno; olhos profanos e divinos.

Olhos que seduzem, que cantam e encantam como o canto da sereia, e fazem os meus facilmente cativos, como navegadores incautos, de sua beleza mítica.

Olhos magnetizantes, hipnóticos, cujo fulgor, belo e mortal como o sol, fascina e enfeitiça os meus como se fossem mariposas presas à lâmpada.

Pobre dos meus olhos, indefesos, totalmente entregues como rês, sem conseguir desviá-los um segundo sequer, como se piscar na presença daqueles olhos fosse um sacrilégio, um pecado mortal.

Esses olhos verdes, entre esmeralda e turquesa, duas preciosidades a procura das quais, como mineradores febris, eu arriscaria tudo, numa cartada de sorte, atrás de sua rara riqueza.

Quem mira esses olhos sabe o perigo que corre, o risco de cair na armadilha de suas águas, claras e plácidas na superfície, porém turbulentas em suas profundezas, e dela nunca mais sair; mas não se pode evitar.

Olhos de Medusa: nem o risco de tornar-se pedra impede o trágico herói, tal qual o gato vitimado por sua inescapável curiosidade, de arriscar-se a olhar esses olhos, porque a morte não é nada se a recompensa é a sua visão.

Agora sei como se sentia o pobre Bentinho, ao mesmo tempo vítima e cúmplice, incapaz de resistir àqueles olhos oblíquos de cigana dissimulada, àqueles olhos de ressaca que parecem prontos a arremeter-se contra a praia numa tarde tempestuosa, para castiga-la, arrasá-la, e por fim tragar seu espólio para dentro do fundo do mar, onde há de ficar por toda a eternidade.

E como se deseja que eles o fizessem! Como, de bom grado, se espera ansiosamente pelo dia em que esses olhos engolir-nos-ão como a escuridão de uma noite sem lua!

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

À quem possa interessar

Neste mar de braços, mãos e lábios
Urdido por palavras desconexas
Que um dia foram promessas
Cheias de pressa em ser feliz
E que hoje jazem esquecidas
Envelhecidas e desbotadas
No fundo de um armário empoeirado
Ou são simplesmente perdidas
Para se reencontrarem tímidas
Como crianças, renascidas, redivivas
Na boca dos apaixonados
No grito dos inconformados
No pulso em riste dos revoltados
É neste mar onde nos afogamos
Que eu mergulho, afundo, vou ao fundo
E, mesmo imerso em palavras, sinto-me mudo
As palavras, se extraviadas pelo meio do caminho,
Encontrar-se-iam no beijo fatal dos extremos?
O último e mortal beijo que daremos
Aliás, sem qualquer arrependimento
Abraços chegam porque têm de chegar
Seja por terra, água ou mar
Nós damos um jeito de os enviar
Um abraço – livre, humano, fraternal
Que teria acontecido com o nosso serviço postal?
Para extraviar tantos abraços por aí?
Quem dera fosse a causa excesso de trabalho!
Aquele abraço que mandei
Dias desses, filho bastardo de noite insone
Cheio de saudade, e que de tantos cuidados cerquei,
Chegou ao destinatário?
Tê-lo-ido encalhar num recife de coral?
Ou caído no abismo que finda o mundo?
Depois da queda, onde teria ido meu abraço parar?
Encontrara, algo bobo, outros braços?
Aos quais pudesse se agarrar?
E que ensinasse-lhe como abraçar de novo?
Pois se alguém o encontrar
Saiba que meu abraço não tem dono
Não é de ninguém e é de todos
É de quem o achar
Como todo abraço,
Ele só precisa de outros braços, abertos
E um peito para chamar de lar

sábado, 12 de outubro de 2013

Que se vayan todos!

Que se vayan todos!
Os arrivistas, os gananciosos
Aves de rapina do mundo dos negócios
Pressurosos em caçar e acumular numerário
Incapazes de amar, só raciocinam com seus bolsos
Entregues à sanha de desejos sórdidos
Investem a vida em egocentrismo e competição
E o que lucram em capital, perdem em humanidade
Deixando um saldo de mesquinharia e indignidade
Como apólice banhada em sangue aos que virão

Que se vayan todos!
Os machistas, os homofóbicos
Os racistas, os xenofóbicos e demais tipos preconceituosos
Ressentidos de sua própria pequenez e mediocridade
Medrosos, alimentam pré-conceitos abjetos e mórbidos
Por crerem-se mais importantes, genuínos e dignos
Quando na verdade são o lixo moral que a história deverá descartar
Logo, num futuro próximo

Que se vayan todos!
Os elitistas, os vaidosos
Os soberbos e presunçosos que não passam de tolos
Preocupados demais com seus umbigos fátuos
Não enxergam um palmo além de seus narizes empinados
Imerecidos da posição que ocupam entre seus pares
Em cujas cabeças se apoiam com pés que nunca viram trabalho

Nunca olham para baixo
E por isso não sabem que estão com os dias contados
Vamos nos sacudir com tanta força
Que eles vão desmoronar sobre o chão
Estatelados e pisoteados
E nós gritaremos então:
Que se vayan todos!

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Conselho para uma vida vivida

Aconselha o homem prático,
Que uma hora chega o dia,
De se pensar NA vida
E retruca-lhe o sábio:
Mas pensar porque na vida,
Se pensar é pensar COM a vida,
E PARA a vida?

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Sabedoria

Muitas pessoas passam ao longo da nossa vida
Sei que é duro deixa-las ir, mas não se aflija
Não se sinta responsável por tantos amores
E, acima de tudo, não queira doutriná-los com seus valores
Aprenda o que tiver que aprender
Ensine o que tiver que ensinar
Você se torna parte de cada uma delas
E cada uma delas se torna um pouquinho de você
Mas todos nós seguimos sendo únicos
Cada pessoa encontra em si mesma seu próprio caminho
Só que, no final, encontramo-nos todos no mesmo destino

A vida 2.0

Estou esgotado de estar conectado a todo tempo
De ser perseguido pela exigência de saber de tudo
De estar em todos os lugares ao mesmo tempo
De ser parte de qualquer evento que acontece no mundo

Tenho que ser multitarefas, proativo
Preciso atualizar constantemente o meu Windows
Ser analógico, 1.0, é a morte!
Obsolescência é um crime capital
Produzir informação é mais importante do que pensar
Ter seguidores é mais importante do que ter amigos
Curtir é o melhor remédio
Nesse universo, você vale os bits que recebe
O caráter opera agora como um google

Meus olhos são uma tela full hd
Meu horizonte tem 1080 pixels e 64 bits
Não tenho mais cérebro, tenho um IP
Minha mente virou ondas eletromagnéticas
É parte da consciência coletiva em wi-fi
Não sou corpo e espírito
Sou dados binários, sou internet
Por favor, só me toque em bluetooth
Quer ser meu iphone?
Venha, eu te adiciono
Você vai me curtir e compartilhar
Eu animo como gifs em tumblr
Minha vida é um youtube, com propaganda
Estou globalmente geoposicionado
Tenho 10 gigabytes de velocidade
Crescem hiperlinks pelas minhas orelhas
Meu cabelo está cheio de redes sociais
No meu rosto tem photoshop
Meu mundo é um perfil
E nele eu sou o administrador
Eu posto, eu comento, eu twitto
Eu curto, eu compartilho, eu publico
E ai de mim se resolvo puxar a tomada
Ai de mim se cancelo o plano banda-larga
Mandam me buscar a toques de celulares
E terei de prestar contas no tribunal do facebook

domingo, 29 de setembro de 2013

Família

Vai-se o tempo
Fica a saudade
Dos parceiros
Família é amizade
É sintonia
E a minha
Eu carrego no peito
Jamais esquecer as origens
Orgulhar-se de onde se veio
Porque uma árvore sem raízes
Não resiste aos contratempos

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Pronomes

Lá vem você
Com o seu eu
No singular
Tu não vês
Que sem eles
Não há vós?
Dê-lhes tu
E sê vós
Mais eu, nós
Um todo só

Um louco

Demoro a aprender
Cabeça dura, burro, teimoso
Resisto a ter de crescer
Sou menino meio velho meio moço
E tenho ainda muitos outros erros a cometer
De novo, de novo e de novo
Ainda me resta uma vida inteira por viver
Com sorte consigo um acerto ou outro
Enquanto isso, vou errando por puro prazer
Se eu gosto do caminho sinuoso
Que diabos eu posso fazer?
Ademais, se é por paixão e gosto
Que mal nisso há de ter?
Já tentei outros métodos, confesso
Sem sucesso - felizmente, devo dizer
E mesmo que vá mudando aos poucos
Não deixo de ser
Um louco

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O livreiro de Rafah

Como sempre faziam todos os dias para irem juntos à escola, Samira e Ahmed encontraram-se com Kamal do lado de fora de seu prédio. Este os esperava impaciente.

– Vocês estão atrasados!

– Não foi nossa culpa, Kamal – respondeu-lhe, Samira. – No caminho havia uma rua interditada que tivemos que contornar. Tinha bombeiros e policiais por todo lado. Parece que um míssil israelense destruiu o antigo cinema.

Ao ouvir essas palavras, os olhos de Kamal injetaram-se de vermelho, um calafrio gelou-lhe a espinha, mas logo foi substituído por uma onda de calor que começou nos pés e foi terminar nas orelhas ruborizadas. Ele fervia de ódio por dentro. E a pressão escapou em vitupérios e anátemas:

– Malditos sejam esses sionistas, filhos da puta! Desgraçados! Eu vou matá-los um por um, eu juro!

Samira e Ahmed já não se assustavam mais com os acessos de ira e as ameaças vãs de Kamal. Conheciam seu temperamento. Sempre quando tomava conhecimento de alguma das muitas e recorrentes injustiças praticadas pelos israelenses contra seu povo, Kamal explodia em fúria cega. Samira não cuidava que um dia ele seria capaz de perder a cabeça de verdade a ponto de botar sua própria vida em risco. Por outro lado, sabia a admiração e respeito que o garoto nutria pelo Hamas e por seu braço armado, as Brigadas Al-Qassam, e tinha medo que um dia ele pudesse juntar-se a elas.

– Vê porque a jihad é o único caminho para a liberdade? Não é possível dialogar com esses criminosos! É preciso expulsá-los, esmagá-los!

Talvez por criação ou por influencia dos grupos mais radicais, Kamal via o mundo através das lentes da religião. Achava que o conflito entre palestinos e israelenses era antes uma guerra santa entre judeus e muçulmanos, cujo desfecho seria a retomada da terra sagrada pelo povo a ela destinado por Deus. Samira não gostava dessas ideias. Mas via em Kamal uma pessoa corajosa e fiel, e amava-o por isso. Enquanto ele discursava, ela tentava demovê-lo de seus planos.

– Você nem tem motivo para sentir tanto ódio, Kamal. Nada aconteceu com você ainda. Se alguém tem motivo aqui para se unir ao Hamas é Ahmed.

Mesmo ao ter seu nome mencionado na discussão, Ahmed não se manifestou. Permaneceu calado, com os olhos tristonhos voltados ao chão, como se não estivesse ali, a cabeça envolta em pensamentos. Era o mais novo dos três. Perdera toda a família durante uma invasão israelense há alguns anos atrás. Numa noite, soldados do exército invadiram sua casa e executaram seus pais, irmãos e irmãs. Não saberia dizer o porquê, nem recorda perfeitamente os acontecimentos daquela noite. Só se lembra de ter sido encontrado debaixo de uma cama e levado para longe de casa. Nunca mais viu nenhum de seus parentes. A família de Samira adotou Ahmed, e desde então ela tem sido sua irmã e protetora.

Diante do argumento de Samira, Kamal silenciou. Voltou os olhos para Ahmed, engoliu seco.

– Vamos à escola – Disse por fim. – Estamos muito atrasados já.

No caminho, Kamal permaneceu em silêncio, pensativo. Tinha uma missão importante para essa tarde, e sabia que Samira não aprovaria. Mas os três eram tão unidos, que se sentiu na obrigação de informá-la.

– Ouvi dizer ontem que explodiram um depósito perto da fronteira com o Egito. Parece que ele estava carregado de armas contrabandeadas. Hoje a tarde vou até lá ver o que encontro.

– O que? Você está louco? – protestou, Samira, enquanto seus olhos enchiam-se de lágrimas. – O que se passa por essa sua cabeça de merda, meu Deus? Você quer é encontrar um jeito de se matar, e não se importa com as pessoas que te amam!

Kamal não respondeu, apenas encarou, impassível, com seus olhos duros os olhos meigos de Samira.

– Eu vou com você – interveio de repente Ahmed.

Os dois voltaram-se para ele, incrédulos. Samira quis protestar, indignada, mas não conseguiu dizer nada. Kamal se sentiu culpado, não queria que ninguém se arriscasse por ele, muito menos seus amigos, mas obviamente respeitava a vontade de Ahmed.

– Então vamos – assentiu Kamal.

Samira, impotente, quis chorar, implorar, gritar, bater-lhes. Não viu, por fim, outra saída senão se juntar à expedição. Combinaram de se encontrar no portão de trás da escola após as aulas, onde Kamal havia amoitado picaretas e pás.

Já passara da hora do almoço quando partiram. Rafah, onde moravam, é uma cidade fronteiriça situada no sul da Faixa de Gaza. Entre ela e o Egito corre uma cerca alta, encimada por arames farpados, e coalhada de soldados armados até os dentes. A fronteira é estritamente controlada pelo governo egípcio, e o acesso entre os respectivos países é restrito. Depois da vitória do Hamas nas eleições, de sua subida ao governo e da expulsão dos moderados do Fatah para a Cisjordânia, o controle e a vigilância endureceu ainda mais devido às pressões de Israel, que considera o partido um grupo terrorista e teme pela segurança de seu país. Segundo o governo israelense, a fronteira em Rafah é a principal porta de entrada das armas que sustentam o Hamas. Cavam-se túneis clandestinos sob ela, e é por isso que a Força Aérea israelense frequentemente realiza bombardeios na região, a fim de destruí-los.

Kamal, Samira e Ahmed chegaram uma hora depois à rua onde ficava o depósito em que supostamente se escondiam as tais armas contrabandeadas. Espalharam-se sobre a montanha de escombros, que se estendia por quase todo o quarteirão, e puseram-se a escarafunchá-la aleatoriamente. De repente Ahmed encontra alguma coisa. Seus olhos, de ordinário macambúzios, tornaram-se curiosos e, por fim, maravilhados quando ele se deu conta que sob os escombros jazia uma pilha de livros.

– Mas... Mas são livros – balbuciou incrédulo, Kamal. – Porque Israel bombardearia um depósito de livros?

E, de repente, tudo fez sentido. A inteligência militar israelense havia se equivocado. Confundira contrabando de livros com contrabando de armas. Não era incomum que, sob o rígido controle fronteiriço, bens de consumo civis fossem barrados na alfândega. Acontecia até mesmo de itens alimentares esbarrarem na burocracia e estragarem esperando autorização para entrar em Gaza. O livreiro de Rafah, por essa razão, resolvera então se arriscar pelos túneis clandestinos, controlados pelo Hamas, o que teria levantado suspeitas de Israel. Afinal, não só armas passavam por ali, mas todo tipo de mercadorias.

Os três amigos passaram então os dias seguintes minerando o antigo depósito e recolhendo os livros como se fossem pedras preciosas. Com eles, montaram uma biblioteca nova na escola, que ficou sob os cuidados de Samira. Kamal esqueceu-se da guerra santa, e pensava agora em fazer faculdade. Segundo ele, existem outras formas de ajudar o seu povo. E Ahmed passava tardes e mais tardes na biblioteca, completamente imerso nas histórias fantásticas de reinos passados e distantes.

domingo, 15 de setembro de 2013

A vida é um círculo

Na vida, nada acaba
Nada termina
Todo fim é recomeço
É a linha de chegada
Ou um novo ponto de partida?
É quando uma ponta da linha
Encontra com a outra
Quando fecha-se o círculo
E outro novo tem início
Não à toa
No universo, tudo é cíclico
A espiral é o movimento universal
É como se realiza o Espírito
É a forma estrutural
A verdadeira face do divino

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A cidade

A cidade é obra humana
É trabalho consubstanciado
Que imprime em concreto e aço
Numa doida sanha
Amores, sonhos e esperanças
De homens e mulheres passados
Cujos restos estão entre nós
Na forma de ângulos, de linhas
E cada traço, cada polígono
Não é simples matemática
A cidade é um volumoso caderno
Um diário, prenhe de histórias
Escritas a várias mãos, apócrifas
É um monumento
À nossa capacidade de transformação
É um livro aberto
A quem quiser dar contribuição

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Rugas

O rosto de couro vincado
Diz muito d’alguém
É como mapa do tesouro
Indicando os passos vacilantes
Sentido ao “x” da vida
Que todo viandante
Necessariamente trilha

O semblante de pele sulcada
É como um pergaminho
Onde a pena do tempo vinca
As tortas linhas de seus descaminhos

Podem ser efeitos de muitos sorrisos
Porque nem toda ruga é de preocupação
Ou podem ser da lida no sol a pino
As marcas da humana servidão

Podem ser simples sinais da idade
Que não avisa nem pede permissão
E que muita gente por fútil vaidade
Tenta esconder como a um borrão

Não se deve ter vergonha
Dessas cicatrizes que o viver imprime
Ao contrário, deve-se ter-lhes honra
Pois são como assinaturas únicas
Escritas na face e na carne
Assinaturas que dão o som
O timbre, o ritmo e a harmonia
Da música pessoal de cada um
Como um vinil a tocar a nossa vida

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Não entendo

Eu entendo o que entendo.
Para mim, algumas coisas são entendíveis,
outras não o são.
À você que não entende,
eu explico:
pare de querer me fazer entender o que eu não entendo.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Carta de alforria de um cidadão de saco-cheio

Por meio desta carta, faço saber a todos que estou partindo. Deixo esta vida miserável e aborrecedora para trás com o coração alegre e a consciência aliviada. Chega de escrivaninhas, arquivos, formulários, precatórios, protestos, petições, cartórios, protocolos, autos, despachos, embargos, mandados, processos. Chega de barba feita e cabelo impecavelmente alinhado. Chega de palavras de tratamento obsequiosas. Chega desta maldita gravata, deste sapato petulantemente engraxado, deste terno presunçoso, destas maneiras enfatuadas. Chega de jantares solenes, requintados, onde todos estão ocupados demais em pavonear-se para poderem ser sinceros de fato, blasonando um ar afetado de importância, como se fossem pérolas num mundo de porcos. É patético.

Enfim, chega desta vida vazia, de sorrisos falsos, de condutas simuladas, artificiais, de frases hipócritas. Esta carta é de alforria, mas podia ser de suicídio, porque vou tratar de matar minha antiga vida. Vou viver aquela que sempre sonhei, sem norte, indo aonde meu nariz apontar, com um violão debaixo do braço e um cachorro vira-lata ao meu lado. Nunca quis ser advogado, muito menos juiz. Formei-me em direito por razões exteriores a mim mesmo, aquiescendo às instâncias de meu pai, que era magistrado, tal qual o pai dele fora e assim por diante. À época, disseram-me que eu era ainda muito jovem, que não sabia nada da vida, que eles sabiam o que é melhor para mim. Agora, passados todos esses anos, não saberia dizer porque, uma vez satisfeito essa injunção, continuei pelo mesmo caminho, sem olhar para trás. Como foi possível esquecer-me de todos os sonhos de juventude? 

Não sei. Sei apenas que, num belo dia, acordei. Por acaso, enquanto vasculhava algumas caixas guardadas, ou melhor, esquecidas no depósito, deparei-me com um velho caderno dos tempos da faculdade, no qual escrevia crônicas e poesias, além de um diário. Era aí, no mundo das palavras e do papel, onde eu podia ser quem eu sou de verdade. Ler aquelas linhas preciosas foi como ter uma epifania. Me senti atordoado, como se tivesse levado um saco na cara. De repente, vi-me num emprego de merda, vivendo uma vida familiar de fachada, e neste dia compreendi que eu sou infeliz, que eu me tornei o que mais desprezava. Portanto, compreende-se que eu não possa mais continuar deste jeito.

Carla, é preciso que você saiba, agora que eu compreende tudo, que me casei com você por conveniência. Sempre achei que você era a mulher da minha vida, que havíamos nascido um para o outro, mas estava enganado. Casei-me contigo porque você tem sobrenome de alto preço, porque você advém de uma família tradicional, poderosa e influente sobre a vida política da região. Além disso, porque você é gostosa, formosa, o tipo ideal de mulher padrão. Você me vestia como uma roupa. Diziam que formávamos um casal lindo – estavam certos. Lindos por fora, podres por dentro. Sempre achei que os problemas conjugais que enfrentávamos eram normais, coisas pelas quais passa todo casal, e conosco não seria diferente. Enfim compreendi que existia algo além disso. Nunca compartilhamos nada exceto o apego à riqueza, ao prestígio, ao conforto e facilidades de quem vive na cobertura da hierarquia social. Mas não se preocupe. Deixo-lhe tudo o que você realmente ama: casa, apartamento, carros, ações. Para onde irei não preciso de nada disso.

Mãe, peço-lhe que, se possível, compreenda os motivos de seu filho, e se não for possível que ao menos o perdoe. Sei que, no fundo, a minha felicidade é o que mais lhe importa. Pai, sei que jamais ser-lhe-á possível sequer sentir o que eu sinto; não obstante, o que eu faço hoje, o faço por nós dois. Compraz-me cuidar que, se tivesse tido você esta oportunidade, agarrá-la-ia com o mesmo delírio que eu a agarro neste momento. Meus filhos queridos, no meio de toda essa desventura frustrada que é a minha vida, vocês foram a única coisa boa que me aconteceu. Por vocês eu faria tudo de novo; eu seria infeliz sem pesar apenas pelo fato de que essa infelicidade me deu vocês. Sem vocês nada disso teria valido a pena. Agora que já estão crescidos, deixo-os aos cuidados do mundo. Sei que me farão orgulhoso. Quanto ao resto da família, aproveito a oportunidade para manda-los à merda. Não me procurem. Por fim, aos funcionários do escritório peço desculpas por deixa-los desempregados, porém não sem antes agradecê-los na medida do possível: todos vocês terão uma agradável surpresa no próximo pagamento. 

Bom, creio que é isto. Hora de dizer adeus. Embora odiando a minha vida, amo as pessoas que fizeram parte dela. Entretanto, agora uma nova vida me espera. Com novas pessoas, novas histórias, novos amores, novas amizades. Como dizem por aí, o mundo é a minha concha. E dá próxima vez que cruzarem com um sujeito esfarrapado, aparentando fome embora de sorriso aberto e gratuito no rosto, tocando violão em troca de trocados, parem e deem-lhe um pouco de atenção, porque pode ser seu filho, seu pai, seu ex-marido.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O mar

Vontade de nadar
Pra longe da costa
Pra dentro do teu mar
Nadar livre
Sem receio
De me afogar
Quando faltar o ar
No teu beijo
De mergulhar
Em seu seio
O vasto véu ondulado
Quando me cansar
Vontade de partir
Pra nunca mais voltar
Em ti submergir
Sem tornar a respirar
De sair deste raso
De ter o pé plantado
Neste plano chão
Feito coqueiro, calado
Quero ser barco
Vencer a rebentação
Quero dar braçadas
Feito peixe n’água
Ir e não olhar pra trás
E a essas praias
Não retornar jamais

Dois em um

Será que se eu te liquefazer
Verter teu caldo sobre mim
E bebê-lo até de bêbado cair
Saciar-me-ei do teu querer?

Alentar-me-á o teu corpo líquido
Transfundido ao meu, quase morto
Tal como o sangue novo e viçoso
Revigora um paciente enfermiço?

Será que se eu apertar você
Com toda a força que tenho
Sufocá-la contra o meu peito
Fundir-nos-emos em um só ser?

Tornar-nos-emos dois átomos a ocupar
O mesmo espaço, tal como dois rios
Passam a ocupar o mesmo leito
Quando juntos vão em direção ao mar?

Será que se nós nos explodirmos
Teremos infinitos pedaços nossos
A semear essa terra carente de carinho?

Ou talvez voaremos juntos ao vento
Alto, bem alto, até os limites do espaço
E como estrelas viveremos até o fim dos tempos?

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Epitáfio

Aqui, coube o corpo
    que sobre o mundo nunca coube
Assim, deu-se jeito
    num sujeito sempre sem jeito
Enfim, chega ao fim
    a busca sem-fim que nunca chegou de buscar
Desta jazida, despede-se da vida
    quem fez dela a arte dos encontros e das despedidas
Sem lágrimas nos olhos, ele se recolhe,
    nesta cova, ao colo da nossa Mãe-Terra piedosa
Parte e vai embora, levando consigo
    o canto triste que cantava seu espírito partido
Espera, esperançoso, ter deixado esperança
    nas encruzilhadas por que passou em suas andanças

O circo

Não se fazem mais pessoas como antigamente
Dessa gente, mal educada pelo cinema, tevê
O circo não mais tira sorrisos nem gargalhadas
Do picadeiro, graça alguma ninguém vê
Das crianças, os olhos que faiscavam magia
Não faíscam mais, nem uma chispa de fantasia
Pensam apenas no game inutilizado em casa
E suspiram: circo é chato por demais!
O leão anda magro, de pelo desgrenhado
E seu rugido não mete medo nem num gato
O palhaço nem meia colorida tem, coitado
Com que vestir o sapato de solado remendado
O macaco trapezista perdeu o vestido de chita
Que tiveram que empenhar a um arrivista
E este já mandou dizer que, se não pagar,
Manda um batalhão de advogado o circo fechar
O elefante não toma banho já vai um ano
E para pô-lo no palco dão-lhe desinfetante sanitário
À contorcionista, restou um collant em frangalhos
Que quando ela se contorce deixa ver a cor da calcinha
E o que dizer do trapezista, cujo único seguro
São os braços do Homem Mais Forte do Mundo?
O grande circo Moscou já viu dias melhores
Por ele não circulam mais enamorados jovens
Rapazes e moças não se dão mais os braços
E suas mãos não mais se encontram por acaso
No fundo de um saquinho de pipoca furado

O equilibrista

A vida de um equilibrista
Está sempre por um fio:
Sustentada por uma linha,
Encimada sobre um abismo
Bamba e ao mesmo tempo firme
Ela balança, solitária, no vazio

Ai dele se não segui-la à risca!
Ai dele se lhe falta tino!
Cuidado, equilibrista,
Muito cuidado onde pisa!

Vida de equilibrista é um sufoco
Ela toda depositada num único risco
Prende a respiração quando o rufo soa
Segura-se nas cadeiras o público do circo

Se, num átimo, perde-se o rumo
Se com o prumo põe-se em desalinho
O corpo bamboleando, braços estirados
Os espectadores, sobressaltados
De susto, suspendem o sorriso
Cuidado, equilibrista!
Muito cuidado onde pisa!

Perfazendo sempre o mesmo caminho
Para onde irá o equilibrista?

Ganhando a vida com malabarismos
Por que será que se arrisca?

Apostando a sorte num tênue fio de um só sentido
Chegará ele ao outro lado vivo?

Cuidado, equilibrista!
Muito cuidado onde pisa!

domingo, 4 de agosto de 2013

A brevidade da vida

Se à vida cabe uma única definição,
    esta seria a brevidade, a concisão;
A capacidade de escapar-nos pelos dedos
    no preciso momento em que cremos
    agarrar-lhe por ambas as mãos.

Tal como a areia dos tempos,
    esvai-se inexoravelmente pelos vãos
    de vários e fugazes momentos.
A vida foge de nós em dispersão;
Para longe ela cavalga, alada,
    nas costas dos quatro ventos.

Foge a outras searas,
    aonde não haja sofrimento;
Leva consigo sementes e andorinhas;
Foge a outras pradarias, outros chãos;
Para longe deste inverno cinzento,
    e toca semear um novo verão.

sábado, 3 de agosto de 2013

Ainda que...

Ainda que tivesse mais tempo
Ainda que houvesse outro jeito
Ainda que não tivesse defeito
E que eu não fosse eu mesmo...

Ainda que houvesse recomeço
Ainda que fosse de novo rebento
Ainda que renascesse em outro berço
E que tentasse de novo pelo avesso...

Ainda que eu fosse menos desatento
Ainda que não me vencesse o desalento
Ainda que vivesse a vida a contento
E que o céu fosse menos cinzento...

Ainda que pudesse ser mais sincero
Ainda que o mundo não fosse severo
Ainda que vivesse a vida sem receio
E que tudo deixasse de ser efêmero...

Que tudo fosse belo e nada fosse feio
Que tratássemos uns aos outros com respeito
Que cabimento não tivesse o desespero
Que não houvesse motivo para ter medo
Que o coração transbordasse pleno e cheio
Que o próspero não se medisse em dinheiro
Que a felicidade não se expressasse em número
Que o amor não fosse mísero mas um exagero
E que meus braços fossem vastos e meus beijos intensos
O suficiente para alcançar o mundo inteiro...

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Viandante

Fazer tudo,
não por inteiro,
mas pra dar em nada.

Deixar as coisas
pelo meio,
e não retomá-las.

Ser eterno começo,
eterno recomeçar,
sem chegada.

Apenas caminhar,
pelo prazer de
caminhar.

Estar aqui hoje,
e amanhã
noutro lugar
qualquer.

Fazer isso agora,
aquilo depois,
mas nada completar.

Andar por andar,
sem objetivo,
sem sentido,
sem nada almejar.

Nem ser,
nem estar:
apenas passar.

E, quando morrer,
como não houvesse existido,
por nada serei lembrado.

Serei simplesmente engolido,
cancelado,
suprimido
nas dunas do tempo passado.

Assim me regozijo,
assim me satisfaço.

Essa será a obra
– inacabada,
desnecessária,
irrelevante –
da minha vida,
como outras tantas
histórias esquecidas
foram um dia.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O nóia da vila

Na minha rua tem um nóia. Tem um nóia na minha rua. Um sujeito tão curioso que merece uma crônica. De fato, não se trata de um nóia convencional. Confesso que até pouco tempo não me condoía um nóia todo estropiado que por ventura encontrasse na rua. Condoía-me um trabalhador pedindo dinheiro, uma mãe portando uma criança à tira colo sem ter o que comer. Simpatizava-me mais com um bêbado esmolando uma dose de cachaça do que com um nóia.

Por falar em bêbado, lembro que, certa feita, necessitando de leda e fósforo, entrei num daqueles botecos fuleiros tipicamente frequentados por bêbados dos mais vagabundos e, antes de sair, fui abordado por um deles solicitando-me que lhe comprasse um corote. Não me fiz de rogado e mandei descer o corote pro tio. Não consigo descrever a alegria que ele sentiu diante de tão generoso auxílio para com um suicida – ou seria simplesmente por ter nas mãos o corote? Seja como for, o bêbado desdobrou-se em elogios à minha pessoa, e assegurou-me que eu era amigo dele de “mili ano”. Mas quando lhe pedi um trago, o sujeito fechou a cara no ato, olhando-me desconfiado enquanto afastava o corote puxando-o para o seu lado. Eu, indignado, retruquei: “porra, acabei de lhe comprar esse corote e você, mal agradecido, não vai me dar um trago?” Ao ouvir tal irreplicável argumento, o tiozinho desarmou-se e abriu um sorriso largo no rosto, passando-me o corote. E eu percebi que bêbados são capazes de compreender argumentos simples.

Mas voltando ao personagem principal desta história – o qual, sendo simplesmente nóia, não entra na categoria “nóia-alcoólatra” –, chamá-lo-emos de Honório, a fim de preservar-lhe a identidade verdadeira.

Como ia dizendo, na minha rua tem um nóia, mas não sou eu que o digo, é ele próprio. Segundo consta, no dia em que meu amigo e companheiro de moradia há sete anos mudou-se para a casa localizada na rua do nóia (antes de eu vir morar com ele), este acercou-se dele apresentando-se da seguinte maneira: “muito prazer, eu sou o nóia da vila”. Quando tomei conhecimento desse fato, meu conceito em relação ao Honório, confesso, subiu alguns bons degraus. Sujeito sincero, sem vergonha, íntegro. Tudo bem, íntegro já foi exagero e bondade da minha parte, mas sincero e sem vergonha ele é, e isso já faz dele um sujeito melhor do que muitos patrões, políticos e magistrados por aí. E isso porque Honório não tem vergonha de ser sincero, e é sincero porque não tem vergonha. Qualidade rara essa. Não lhe peja sua condição de nóia e vagabundo, condição que, aparentemente, foi escolhida livre e conscientemente por ele. Daí porque ele é um sem vergonha (no sentido que se diz às pessoas que não querem trabalhar). Em suma, o nóia da vila está muito bem resolvido com sua opção de vida, e vai muito bem como nóia, obrigado.

Não sendo trabalhador, resta-lhe pouquíssimas atividades com as quais arrecadar fundos a fim de sustentar seu vício. Uma delas é o furto. Mas Honório garante que não o pratica, e, a julgar pelo que eu vejo, sou levado a acreditar nele. Nada indica que o nóia da vila pertença à categoria “nóia-ladrão”. Na verdade, se fosse para enquadrá-lo em uma categoria específica, esta seria “nóia-empreendedor”, por mais estranho e curioso que isso pareça. Com efeito, Honório é praticamente um homem de negócios. Ele investe no setor de “bens descartados e achados na rua”. Seu negócio funciona da seguinte maneira: ele vaga pelas ruas da cidade atrás de itens velhos e/ou indesejados, descartados por seus donos, mas que podem ser reaproveitados por outros. Tal como um bom empreendedor, Honório farejou aí um mercado e deu entrada nos negócios.

Ele já me apareceu aqui em casa vendendo mercadorias das mais variadas espécies, desde revistas e livros, passando por LPs e CDs, até sapatos furados, carrinhos de controle remoto sem controle remoto e – pasmem! – garrafas de whisky sem whisky. Trata-se de um comerciante eclético, à semelhança dos antigos biscateiros, que iam de porta em porta oferecendo a última palavra em artigos para o lar. Eu, que tenho enorme dificuldade em falar não, já adquiri vários produtos desse inusitado comerciante, como dois sapatênis inúteis pela bagatela de dois reais. Mas já saí no lucro também. Por exemplo, a minha primeira aquisição foi uma mesa para computador em ótimo estado. Lembro quando ele me chamou à porta de casa e me perguntou se eu não estaria interessado. Fui com ele ver a tal mesa, meio desconfiado, imaginando que ao chegar lá não encontraria senão uma porcaria em estado deplorável, e qual não foi a minha surpresa quando me deparei com uma bela mesa cor mogno, praticamente nova. Ao apenas relar nela, entretanto, ficou claro que ela desmontaria com um simples sopro. Mas poderia ser consertada. Barganhei. Ele queria dez. Eu regateei e ofereci cinco. Ele meditou uns segundos e fez sua última oferta: seis – um real a mais para o cigarro, já que a pedra custa cinco. Achei justo e fechei negócio. E cá estou eu, escrevendo sobre a minha mesa cor mogno, que com uns preguinhos a mais ficou como nova.

Mas o que eu mais gosto de comprar mesmo do Honório são livros. Ele percebeu meu interesse e, agora, sempre quando acha livros na rua corre até mim para vendê-los. Tornou-se quase um fornecedor particular, um livreiro pessoal. Na maioria das vezes não me traz nada além de livros didáticos sem valor, ou livros referentes a áreas e temas completamente desinteressantes ou inúteis, entre eles, respectivamente, auto-ajuda e física da década de 50. E ele, como um bom vendedor, rapidamente inteirou-se a respeito dos meus interesses: ciências humanas, em geral, e, em particular, sociologia. Quando aparecia aqui com um livro para vender ia logo dizendo: “você que faz socialismo tem que ler este livro”. E, de fato, cheguei a adquirir um belo e conservado exemplar de Parceiros do Rio Bonito, de Antônio Cândido, junto com mais seis outros livros menos importantes por apenas doze reais. Eu ofereci dez. Ele, sabido, percebendo meu indisfarçável interesse, não fez por menos de doze. Bom negociante esse Honório. Teria dado um ótimo vendedor caso não tivesse entrado no mundo das drogas. Mas espere. Não é ele, de fato, um negociante habilidoso? Não é ele, efetivamente, um vendedor? Se você, caro leitor, entabulasse negociação com ele entenderia do que eu estou falando. Por exemplo, quando vai vender um livro, Honório lê o título com a mesma pompa de um intelectual erudito, cita o autor com o mesmo ar grave e solene com que um acadêmico cita um grande nome da sua área de estudo. Não dá para negar que fica-se com a impressão de que ele realmente sabe do que está falando.

Podemos não gostar de reconhecer isso, mas, com drogas ou sem drogas, o nóia da vila desenvolveu suas habilidades. Para ser sincero, já passei por muitos corretores de imóveis, lojistas de roupas, e nunca conheci um vendedor tão habilidoso como ele. Grosso modo, os vendedores não nóias fingem-se amigos íntimos de uma tal maneira que a artificialidade da encenação desagrada e aborrece o potencial comprador. Já o Honório não; é espontâneo, natural. Além disso, ele desempenha outra função social, de fundamental importância, que deve ser sublinhada: reciclador de lixo. O que é lixo para alguns, é mercadoria para outros, e dinheiro para Honório. O que ele faz com esse dinheiro, meros trocados, não interessa: se é comprar comida para uma criança ou se matar de fumar pedra. E não interessa mesmo sabendo que esse dinheiro vai ajudar a sustentar não apenas o vício de Honório mas também o tráfico de drogas. O problema do consumo de drogas e do crime organizado é muito complexo para ser tratado aqui. Digo apenas que não é evitando dar dinheiro a pessoas como Honório que a situação vai mudar. Ademais, quem acha que o burguês não consome drogas do crime organizado é muito burro ou muito inocente. A diferença é que burgueses viciados não enfrentam o estigma que recai sobre viciados pobres.

Não quero, com este texto, erigir em mártir ou modelo o meu vizinho nóia. Creio que, por óbvio, nem precise argumentar aqui que ele é parte de um enorme e complexo problema social para o qual devemos encontrar soluções radicais. Tampouco é preciso lembrar o sofrimento que ele suscitou nas pessoas que o amam. Preferia que, ao invés de nóia, Honório fosse um trabalhador esforçado e responsável. Só que neste mundo nem sempre é possível ser correto e fazer o que todos esperam que a gente faça. Escrevo essa crônica apenas para lembrar que pessoas como Honório são seres humanos como nós, com uma história de sonhos, tristezas, alegrias, e que, por mais fodidas que elas estejam, por maior que seja a cagada que fizeram com suas vidas, nem por isso deixaram de ser humanos. Tendo a acreditar que nada pode extirpar completamente a humanidade de alguém, nem mesmo uma droga como o crack. Honório é exceção, eu sei. Ele sustenta seu vício legalmente com criatividade e espirituosidade. Mas o que a sua história coloca em questão não é a capacidade humana de preservar a todo custo a sua humanidade, e sim o nosso olhar sobre pessoas como Honório, que cometeram erros, que não tiveram oportunidade, que não foram fortes para não se extraviar pelo caminho, e como esse olhar, de indiferença e estigma, ajuda a perpetuar histórias como a do Honório, o nóia da vila.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Porque poetizar

Pare um minuto de seu dia
Para ler uma linda poesia
Quebre esta insana rotina
E faça as pazes com a vida

As palavras, ditas e escritas
São encantadas com magia
E sua mágica é trazer alegria
Para quem vive de desditas

As poesias fazem companhia
São amigas nas horas infindas
Preenchem as vastidões vazias

Alegram com passos de bailarina
Tornam fatos chatos alegorias
Distraem a carrancuda monotonia

Fazem da realidade fantasia
Bordam o sonho com maestria
Unem os extremos de uma linha

Aquietam um coração em disritmia
Põem sentimentos em sintonia
Revivem momentos de nostalgia

Ajudam a suportar a travessia
Alumiam quando já não é de dia
Abrigam durante e após a ventania

Reconstroem uma história em ruínas
Elevam os chãos pontos de vista
Retificam as nossas vãs filosofias

Curam os golpes que a pele não cicatriza
Punem a maldade que nos sevicia
Forram de comida a barriga em carestia

Poesias são como mães enternecidas
Sempre prontas a nos fazer carícias
A nos aconchegar nas noites frias

Noite, a amante

Eu gosto mesmo é de me perder
De sair por aí sem ter aonde voltar
De procurar sem mais nem porquê
E em teu corpo nu me encontrar

Eu gosto é de beber o sexo da noite
De vertê-la toda na boca até enjoar

De uivar doido à lua feito um coiote
E com teu gozo lúbrico me embriagar

Em meus braços ver a lua deitar ensonada
Já cansada de uma longa noite de farra
Após vagar nua pela rua de madrugada

A noite é a melhor amante de todas
Não nos ferimos com mágoas bobas
E divertimo-nos juntos nas horas boas

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Ode à desordem

Por que continuamos por aí?
Não vemos que assim não há caminho?
Esta estrada não nos leva para longe daqui
Ao contrário, ela só nos faz caminhar em círculos
É preciso aventurar-se fora desses limites pré-definidos
Encompridar o olhar em direção ao infinito
Ao jamais concebido – por medo ou por escrúpulos tolos
É preciso dar a mão a quem vem em sentido oposto
Corajosos visionários que chamamos de loucos
Só porque suas bússolas não apontam ao mesmo norte de todos
Só porque suas vidas expõe a falsidade de nossas pobres certezas
É preciso pôr de cabeça a baixo este mundo de rudezas
A libertação de tudo exige sacrifício e redenção, e não perdão
Exige escolhas impensáveis sustentadas com firmeza
A destruição, à marretadas, destes muros que apartam
A pretexto de nos proteger sabe-se lá de que borrasca
Nosso pior inimigo é interior, é espiritual, somos nós mesmos
São nossos medos os demônios que é preciso arrostar
Só há salvação na recusa absoluta, sem condicionamentos
Nem uma exigência qualquer aceitaremos!
Nenhuma injunção que vier acataremos!
Nem um centímetro sequer recuaremos!
Equilibrar-nos-emos nos temíveis polos e extremos,
E do meio, das ponderações razoáveis, fugiremos
E pouco nos importa o perigo da queda
Não buscaremos acordos, diálogos ou coisa que o valha
É agora ou nunca, é tudo ou nada
Quem mata não morre: ode, ode à desordem!

sábado, 27 de julho de 2013

A cirurgia

“O que é mais ridículo: um corpo feio ou a busca obsessiva por um corpo ideal?”, perguntou-se Carolina, num assomo de lucidez que raramente lhe ocorria. Pode-se ignorar a consciência, mas não é possível suprimi-la. E a lucidez é uma arma que o instinto lança mão quando ameaçado por algum perigo iminente.

Instintivamente, o corpo de Carolina buscava preservar-se da agressão que ela, voluntariamente, lhe faria. Afinal, não havia fundamento racional naquilo. Não havia necessidade médica para submeter-se a uma operação de risco daquele tipo; ao contrário, o risco estava precisamente em submeter-se a ela, sem mencionar o lento e penoso processo pós-operatório de recuperação. Seu médico não lhe desaprovara a decisão; como parte de seu papel de médico, contudo, havia-a colocado a par de todas as consequências possíveis implicadas nessa decisão. Naquele momento, Carolina fizera ouvidos moucos às suas palavras, obsedada como estava em emagrecer. Agora, encolhida ali naquela cama de hospital, à uma hora da cirurgia, ela sentia muito medo, e se perguntava se fizera a escolha certa.

Postado no alto, à sua frente, o relógio se arrastava lenta porém inexoravelmente. Ao seu lado, jaziam flores num vaso; votos de boa-sorte. No entorno, um silêncio de morte e aquele odor característico de hospital ressudando por toda parte. Alguém passou em prantos pelo corredor, enquanto, inconsolável, consolava-lhe um ombro amigo. Carolina sentiu a espinha gelar. O que diabos fazia ela naquele lugar?

Tentou resgatar na memória seus motivos, a fim de justificar a si mesma que não era a toa que submetia-se àquele sacrifício voluntário. Ora, que melhor motivo teria do que o fato de ser gorda? E, além de gorda, era baixinha, atarracada, cujos membros roliços pareciam saídos daqueles espelhos fanfarrões dos parques de diversão. Não era como os de algumas de suas amigas, delgadas e esbeltas, cujos braços pendiam suavemente dos ombros elegantes. Detestava sua bunda, seios e coxas. Da barriga, então, é melhor nem falar.

Desde quando, ainda criança, começou a dar atenção às suas formas, e a compará-las com as de outras mulheres, sobretudo às daquelas que a tevê exibe radiantes, Carolina sentia-se horrivelmente feia, desajeita, nada atraente. Conforme crescia, crescia também essa sensação, ao ponto de não poder sair de casa senão com roupas que disfarçassem os quilos em excesso. Comprar roupas lhe pareceu sempre um pesadelo, não uma diversão. Ficar de biquíni em público, então, nem pensar. Apenas a ideia lhe causava vertigem. A adolescência, fase da insegurança por excelência, fora particularmente angustiante. Carolina precisou de psicólogos e remédios para conseguir levar uma vida minimamente normal. Em partes, conseguiu superar o trauma, mas a obsessão com o próprio corpo calou fundo em sua alma.

E o diabo é que Carolina possuía um lindo rosto. Só que, assentado sobre seu volumoso corpo, como se fosse uma cereja apetitosa sobre um bolo disforme, ninguém parecia notar. Ou melhor, antes perscrutavam seu corpo para somente depois reparar-lhe o rosto. Superada as crises da adolescência e conquistada certa segurança e autoestima, Carolina mostrava-se uma pessoa extrovertida, carismática, traço herdado da infância e nunca completamente abafado. Agora, aos quase trinta anos, quem a conhecia logo se encantava com aquele seu sorriso largo. Mas a impressão inicial, baseada em seu corpo, ficava sempre pairando no ar, inscrita nas expressões faciais traídas dos interlocutores, ou assim Carolina imaginava. Embora se considerasse uma pessoa feliz, sentia como se faltasse alguma coisa para o quadro completar-se, algo de indefinido. E era esse vazio que ela pretendia preencher com a operação de redução de estômago.

Agora restava apenas meia hora. Logo a enfermeira adentraria pela porta para levá-la à sala de cirurgia. Enquanto isso a tensão aumentava, fazendo Carolina transpirar pelas mãos e seu coração palpitar desordenadamente. Virou o rosto de lado, procurando com os olhos os olhos da amiga. Deu com eles ternos e apiedados. Esta imaginava o que se passava pela cabeça de Carolina, e sentia pena dela por isto. Mas uma amiga é uma amiga, e por mais que discordasse da decisão de sua decisão, respeitava-a e, como não havia meios de demove-la, apoia-la era o que lhe restara. Ademais, como ela, que estava casada e feliz, poderia condenar a amiga, que nunca havia namorado na vida, por tomar tal decisão drástica? Uma amiga não substitui um companheiro, e jamais substituiria. Se Carolina achava que este era o meio para alcançar a felicidade, tornando-se mais atrativa aos olhos das pessoas, então que assim seja.

Às dez horas em ponto a enfermeira apareceu, acompanhada pelo médico, um sujeito grisalho de meia idade. Ministrada as últimas informações à paciente, com eles lá se foi Carolina. Sua amiga permaneceu alguns minutos a mais no quarto, arrumando seus pertences e deixando-o à espera de Carolina para quando esta regressasse com o estômago reduzido a um copo de café. Dali em diante, adeus aos prazeres gastronômicos da vida. Sua alimentação teria de ser rigidamente controlada, tanto em termos de quantidade, quanto de qualidade e de horário também. Carolina ficaria refém dele para o resto de seus dias, sendo que, ainda por cima, não havia garantia de que ela não voltaria a engordar. Em tese, este tipo de operação deve ser feito como última opção, e jamais com fitos puramente estéticos. Quando se têm dinheiro para pagar, entretanto, as prioridades se invertem, e não é difícil obter o serviço de médicos renomados. Carolina não era rica, mas também não era pobre, e com alguns sacrifícios financeiros foi-lhe possível juntar o dinheiro necessário.

Em três horas apenas Carolina estava de volta ao quarto. Dera tudo certo. Em três dias sairia do hospital, caso tudo corresse bem. E logo poderia voltar à sua vida normal. Mas nada seria como antes. Não apenas porque fisicamente fora alterada. Nem porque seus hábitos alimentares tivessem de ser drasticamente disciplinados. Antes porque sentia que as mudanças externas refletir-se-iam internamente. Com um corpo esbelto, aquele vazio desapareceria, aquela sensação de falta sumiria. Sentir-se-ia mais confiante e desenvolta. Olhar-se-ia no espelho sem raiva ou medo, mas com satisfação e prazer. Usaria as roupas que quisesse. Acima de tudo, as pessoas a olhariam de outra forma, com outros olhos. Não como antes, quando, ao entrar num ambiente público qualquer, podia sentir os olhares de repulsa a pesar sobre ela como chumbo, fazendo-a inevitavelmente evitar encará-los de frente, restringindo-lhe os movimentos por medo de dar qualquer motivo àqueles olhares inquisidores que pareciam dizer: “gorda asquerosa”, “para de comer, sua gorda”, “deve ser virgem, essa jamanta”. Quem sabe agora tivesse coragem até mesmo para abordar um homem solitário nalguma mesa de bar. Ou quem sabe algum homem solitário a abordasse num bar qualquer. Quem sabe? Carolina, satisfeita, sonhava com a vida feliz que o futuro lhe reservava, agora que entraria no mundo maravilhoso das pessoas magras.