quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Comunicação

Quando eu falo
Não sei o que ouvem
Quando respondem
Não sei o que falaram
Mal sei o que ouvi
Quando falam
Não sei o que ouço

E o que eu faço?
Mantenho o ouvido apurado
E o espírito, este bem aberto

Pacifismo

Comunistas e não comunistas
Deixemos esses esquemas,
Mesquinhos, de ver a vida
De conceber a realidade
Como campo de batalha
Quem faz guerra
São Estados
E não pessoas
É já hora de recursamos
Essas expressões militares
Quem tem lado é exército
Que divide o mundo em metades
Onde cabem apenas duas
Tristes e solitárias
Possibilidades:
Ou bem está conosco
Ou bem está contra nós
Mas onde eu finco os pés
Não cavo trincheira
Entre eu e você
Se estende mais do que uma Terra de Ninguém
Podemos ser outra cousa além de amigos ou inimigos
Companheiro-em-armas?
Isso é patente?
Não sou, desculpe-me
Sou pacifista
Guerra, só se for de travesseiros
Entenda, não recuso a ideia
De que só a luta muda a vida
Recuso o que você entende por luta
E sobretudo por vida
Pra mim ela se parece mais com um carnaval
E eu quero todo o mundo no meu funeral
Você não concorda?
Contigo é preto no branco?
É durão?
Senta aí, vamos conversar
Traz mais um copo, garçom!

Vastidão

O mar é muito vasto
Nem cabe no meu pensamento
Quantos baldes dele tenho que tirar
Até o mar esvaziar
Imagina quanta coisa não acontece
Lá embaixo
Naquelas profundezas abissais
E se você olhar
Entre as pedras
Na água rasa onde a terra o mar vem beijar
Verá um universo tão vasto
Fervilhando
Quanto o próprio mar
O mar é muito vasto
Mas mais vasto mesmo
É o nosso olhar

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Um gesto

Nesse vasto vasto mundo
Há tantos gestos bonitos
E um dos mais
É encostar
Testa com testa
E se demorar
Fixando o olhar
Ou mantendo-os fechados
Tanto faz
A beleza está na união
Que ele simboliza
"Te amo"
"Estamos juntos"
"Vai ficar tudo bem"
O sentido é universal
Testa com testa
Entre duas pessoas
Entre um humano e um animal
Entre um adulto e uma criança
Entre um casal
Mas repare bem
É pra encostar
E não pra bater
Cabeça

Pra começo de conversa

Ser crítico
Não é ser chato
Achar que os outros
Estão errados
Não é concluir que é você
Quem está certo
E desejar mudar o mundo
Não é querer um só pra você

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Radical

Eu acho linda a palavra radical
Poderia repeti-la todos os dias
Radical, radical, radical, radical

Só não estrague-a com ismos
Não me venha com radicalismo
Não confunda-a com os extremos

O radical não está fora
Antes está dentro
Ser radical é descer às raízes
Múltiplas e plurais
Do que somos
E do que seremos

Um conto machista

A mulher passa pela rua
Um homem cruza
Ela de cabeça baixa
Desvia o olhar para o chão
Suspende a respiração
E continua
Ele não tira a vista
A estupra com os olhos
Torce o pescoço
Torce a cara
A carranca medonha
De um monstro
Grunhe como animal
Palavras obscenas
Não há revide
Ela é presa fácil
Não pode defender-se
Ele sabe disso
Ela também
Ela quer correr
Quer gritar
Mandá-lo à merda
Castrá-lo com uma faca cega
Como se castra um porco
Ele quer possui-la
Quer exercer seu domínio
Sobre o corpo feminino
Se não com o pau ou com a mão
Que seja com as palavras
Que violenta simbólica
Psicológica e moralmente
Reproduzindo papeis
Afirmando posições
De poder e dominação
Findado o abuso
Cada um segue o seu caminho
Ela, com medo
Temendo o próximo desconhecido
Que irá reclamar seu direito
Sobre o corpo feminino
Ele, satisfeito
Sentindo-se másculo
Forte e corajoso
Cheio de si
É o pior dos covardes

Depois da chuva

Foi-se a chuva embora
Abriu-se o azul do céu
Em sol poente
Acima do mar suave
Folgazavam gaivotas
O dia despedia-se em tarde
E a mata reverdejada
Me convidava à arte
Da fotografia
Trago a câmera
E os pés descalços
Na praia de areias molhadas
Vindo ao longe
De bote a remos
Um senhor de idade
Na mais bucólica das cenas
Para a composição perfeita
Só faltava mesmo
A sua senhora de sombrinha
E longo vestido de chita
Ele para de repente
Procura algo nos bolsos
Um pequeno objeto
Aproxima-o do ouvido
“Alõ?”, diz ele
“Não, tô remando”
E desligou
O romantismo acabou
E eu voltei a 2014

Ode à vida

Sentei-me à beira do desconhecido
E contemplei
O que não podia conhecer
E, de repente
Fez-se precipício
E pude perceber as almas
Lá embaixo
Às milhares
Atarefadas, atabalhoadas
Colidindo-se
Extraviadas entre carros e concreto
Outrora desconexo
Da perspectiva das nuvens
O cheiro de morte
Ressudando do asfalto
A cerveja barata
A pressa
A comida requentada
Os pequenos acasos
Que pululavam
Vistos do alto
E os sorrisos
As brigas
O amor e ódio
Pareciam fazer mais sentido
E como tudo era belo
Do silêncio pacífico do céu
A descortinar dádivas diárias
Desperdiçadas sem perdão
Uma espécie de milagre
Aquele carnaval
Misturando suor e saliva
Lágrimas e ressaca
E eu fiz menção de descer
Juntar-me ao cortejo
À procissão dos condenados a viver
Misturar-me ao desfile
Transar na rua
Levar socos e pontapés
Abandonar e ser abandonado
Correr o risco
De acabar sozinho
Velho sem ter vivido
Num dia nublado qualquer
Enquanto duas pessoas
Fugindo da chuva
Se guardam mudas
Debaixo de um toldo furado
Na esperança da banda passar
Se guardando
Para quando o carnaval chegar

Holismo

Pessoas várias
Especiais em si mesmas
Passarão e passarinho
Voando
Pela tua vida
Como numa longa migração
São caminhos
Que se cruzam
Seguem juntos
E depois se apartam
Para continuar
Cada qual a sua sina
Mas aí nada será mais o mesmo
Se você souber ensinar
E aprender
Não use as pessoas
Não espere ganhar
Dar é receber
Ofereça algo
Ainda que em troca de nada
Deixe uma marca
No ser de alguém
Algo para se lembrar
Algo que pode mudar a sua vida
Para sempre
Sua forma de ver e sentir
E você fará enternamente parte
Dessa pessoa
O mapa da vida não tem um sentido
Na verdade
É uma rede intrincada de possibilidades infinitas
Que não se constrói sozinho
Cada um de nós tem papel e importância
Ao criar as possibilidades que outros irão explorar
Vivemos várias vidas
Somos várias pessoas
Nem sempre eu consigo
Nem sempre eu tento
Mas eu desejo
Sempre
Fazer a diferença na vida de todo o mundo
Que por azar ou sorte
Me encontrarem por aí
Perdido, zanzando
Em busca de algo que não tem nome
Nem se pode nomear
Que não admite posse
Mas se pode encontrar
Se se souber onde procurar

Mãe

Mãe,

Eu tenho ciência
De todo o investimento
Que você fez nos últimos 29 anos
Sei também que ele está demorando acima da média
Que já era para ter-lhe rendido bons frutos

Mas, veja
Este é um investimento de longa maturação
E seu valor não se traduz em bens e imóveis

Agora eu entendo essa ideia simples
Que você tentou me ensinar a vida toda
E eu era egoísta demais para ouvir
Que o conhecimento
É a maior riqueza que uma mãe pode deixar de herança

Como todo filho
Eu carrego remorso e culpa
E como todo filho
Eu quero lhe pagar tim-tim por tim-tim
Mas não em dinheiro
Porque sei que não foi isto que você investiu em mim
Foi amor, carinho, compreensão
Abnegação, dedicação
E eu poderia arrolar palavras ad infinitum
Que só você, afinal, sabe pelo que passou

E agora eu compreendo
E sou grato
Vou pagar-lhe não em dinheiro
Mas com orgulho
E com a sensação de que tudo valeu a pena
O mundo não lhe deu a oportunidade de estudar
Mas mesmo assim você me deu
Vou ser então tudo o que você sempre quis ser
Uma intelectual, uma estudiosa, uma escritora
Porque é isso que você é, afinal
E é isso o que eu sou
Porque eu sou você

Com amor,
Seu filho

Primavera

Eu acordei com um pressentimento
A manhã estava quente e abafada
A terra transpirava
E a montanha respirava, serena
Olhei a mata ao meu redor
Majestosa, ancestral, arcana
Ela me olhou de volta
Com seus olhos ferinos
E no entanto maternalmente meigos
E eu não senti medo
Senti a paz absoluta
Por um instante eterno
Parou o inexorável tempo
E foi como se toda aquela beleza
Me esmagasse em seu seio
Mas eu não senti dor
Nem me senti só
Antes me senti um só, com tudo
Me senti em casa, de volta ao útero
Do universo
E vi que as flores balouçavam
As árvores farfalhavam
Os pássaros chilreavam
Os insetos formiguejavam por toda a parte
E tudo estava vivo
E falava
Comigo
Eu apurei os ouvidos
E o que me disseram foi como um desígnio:
É a primavera que eu anúncio
Vá espalhar a boa nova

Calçadão

No calcadão
Tem tudo quanto é gente
Tem gente comprando ouro
E gente vendendo sonho
Tem gente de talento
E gente que nem tanto
Tem gente explorando o sexo
Gente vendendo o corpo
Tem gente se drogando
Gente pedindo um trocado
E gente correndo atrás do pão
Tem gente namorando
Gente se conhecendo
E gente se despedindo
Tem gente anunciando o fim do mundo
E gente oferecendo a salvação
No calcadão tem gente de todo tipo
Tem gente pilantra
E gente honesta
Gente preocupada
E gente em festa
Tem gente boba
E gente esperta
Gente perdida
E gente achada
Tem gente normal
E gente esquisita
Tem tanta gente
E a gente sendo só mais um
Até some
No meio de toda essa gente comum

A graça

Engraçada
A vida
Um dia
De graça
Ela se engraça
Conosco
E nos dá graças
De novo
E nos enlaça
A todos
O choro passa
A fé recobra a alma
Eu me rio
D'água
No oceano
E acho graça
Porque a vida
Vivida
Sempre nos acha

A vida é engraçada
A vida é uma graça
A vida é de graça
Vai, se engraça
Que a vida passa
Eis aí a graça

Muito dentro da gente

É feminista
Mas quando xinga
Xinga uma mulher
A puta é a sua preferida
Ou seja, a mulher não submissa
E mesmo quando tenta ser equitativo
Inicia sempre pelo gênero masculino
A mulher vai entre parênteses
Caro(a); prezado(a)
E adora usar o falo metafórico
Para domar os discursos
E consequentemente os corpos
É pró-homossexualidade
Mas tem vergonha de ser visto
Só, com um gay
Com medo do que irão pensar
E se desarma diante de um
“Hummm...ui”
Carregado de ironia homofóbica
Daí recobra
Ainda que a contragosto
A postura de macho
Não faz piada
Mas abre um sorriso desconfortável
Ante uma
Quando deveria fechar a cara
Ser honesto, se opor, argumentar
E machismo e homofobia entre amigos e familiares
Daí pode?
Como se a atitude a mudar fosse alheia
Estivesse em outro lugar que não na nossa realidade
Como se o mal estivesse numa tal “sociedade”
Que existe sabe-se lá onde
E não aqui e agora
Na vida, no cotidiano
Dentro de nós mesmos
A “sociedade” é patriarcal
Eu não
Mais do que princípios
Mais do que teorias
Lindas frases feitas e vazias
Precisamos de atitudes
Comportamentos coerentes
Exemplos e práticas
Tomar ciência acrítica do problema
É a parte mais fácil
Agora vem a parte difícil
Empenhar-se honesta e corajosamente na luta
E ela começa com você, comigo, conosco
No dia-a-dia
Nos pequenos espaços
Nas relações próximas
Para só depois chegar neles, nos outros
Na sociedade como um todo

Criança interior

Tem vezes
Quando eu sonho acordado
Sinto como se fosse um balão
E penso que se abrir os braços
Posso sair voando
Na minha imaginação
Saio num pique
E me dá uma coisa doida
De vontade
De parar o que estou fazendo
Para girar cambota
Porque não caibo mais em mim
E se me chamam à realidade
Eu digo assim:
Dá licença?
Vou ali dar uma pirueta
Volto já
E sobre a mesa
De trabalho
Deixo avisado:
Hoje é dia da criança
Interior
Feriado mundial
Fui plantar bananeira
Na grama do quintal

Pós-pós

É tanto
Pós-
Pós-isso
Pós-aquilo
Que eu me perco
Entre os ismos
Nem sei mais onde
Me pós-

Da cela

Põe em parênteses a vida
Suspende a pouca alegria
Trabalha mudo noite e dia
E esquece tuas promessas
Que a necessidade aperta
As contas não te esperam
Chora a criança na miséria
A menina pobre na favela
O homem de raiva na cela
Ah, como a vista é bela!
É tão linda a cidade da janela