terça-feira, 17 de junho de 2008

Cotidiano

Com um forte solavanco ele abre a porta da casa. Está bêbado, exalando o forte odor de álcool adocicado característico da popular cachaça brasileira. Ele põe-se para dentro. Ao entrar, bate a porta contra a batente com tamanha força que a faz pular da cama num espasmo de terror.

Ela já dormia há algumas horas. A brutalidade com que o cônjuge adentrara na casa arrancara-lhe de um sonho. Sonho não, pesadelo. Agora, o pesadelo mais uma vez era real. Não suportava mais o sofrimento calcado no terrorismo imprevisível do marido possuído pelo tal do encosto – como lhe havia explicado o pastor da Igreja Pentecostal. Aliás, marido não. Não mais. Haviam separado-se a dois anos. Precisamente o tempo pelo qual ele estivera “amarrado” pelo demônio. Há dois anos a situação era a mesma, mas o sofrimento, esse começara bem antes, desde o casamento.


Porque houvera de ter se casado com esse traste? A labuta na vida de Maria começara muito cedo. Nunca fora bonita. Sempre tímida, tinha enorme dificuldade em se relacionar socialmente. Por esse ponto de vista parecia-lhe razoável casar com esse homem. Fazer o que? De maneira ou de outra sonhava em ser feliz. E quem não sonha?

Agora lá estava ela. Acordara de um pesadelo onírico para se apreender num pesadelo real. E lá estava ele, revirando as panelas em busca da janta requentada do almoço. A separação não teve efeito nenhum. Ele tinha a chave. E ai de Maria se ela tivesse a audácia de trocar o segredo da fechadura. Toda noite, após muitas dozes de cachaça, ele vinha até sua antiga residência saciar as necessidades libidinosas do seu corpo. Era sempre a mesma coisa: comia o resto da janta, fumava um cigarro, entrava no quarto de Maria e a estuprava.


Maria era forte, calejada, e agüentava estoicamente o sofrimento da vida. Ele era fraco, covarde, acostumado desde pequeno à covardia do mais forte. Mas Maria, caso tivesse outra oportunidade, não sonharia novamente. Já sucumbira à desesperança. E esse era o cotidiano de uma maria qualquer no Brasil.

Quem paga este preço?

Palavras tronchas insufladas de vergonha
Profetizam ainda mais insensatez por vir
Ainda que para nós, distintos de quem sonha,
Haverá de reservar-se um caminho a seguir.

Não profetizarás tal desmedida desavergonhice
Mesmo que benfazeja seja sua sandice!
“Verás sempre o mesmo caminho” eu te disse,
Pois quem sonha, sonha tristes maluquices.

Mas posso sonhar, posso mudar!
Não vê aonde quer chegar?
Sozinho ficará se esta atitude não mudar
Sonhar é para quem ainda não tem lugar pra ficar...

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Volto para casa sozinho

Pois volto sozinho,
Sem casa e sem ninho.
Sou andança sem caminho,
Vivência e medo do delírio.


Para todo sempre tímido,
Com receio de viver desinibido
Sem saber dos gestos mínimos,
Que fazem da vida os mímicos.


Deu-se criança feita de trejeitos
Com todos os caprichos dos soberbos,
Mas são apenas poemas lidos sem jeito.


Difícil ultrapassar, as cantigas de ultramar,
Que fizeram dos trovadores seu pesar,
Os sonhos modernos de se relacionar,
Tornaram-me ilha que a tempestade há de castigar.


Castiga-me fulgurante ira,
Mata-me a vontade de ida,
Porque a volta é mera fictícia.
E a entrega é espiritualmente mais rica...


Não tenho lugar, pois, em tal mar,
Não posso nem pescar, nem nadar,
Talvez seja sede de me afogar...

Viúva de um amor

Ser pessoa da rua,
Só enseja meu ser,
A sair e ver a lua,
Que um dia quiseras ter.

Foste minha, foste pura,
Mas tivera que morrer
Da fome que não cura,
Ao me ver e não me ter.

Tu morreste viúva,
Pois minha boca mais úmida,
Havia tempos virara pública.

E levaste toda a memória
Qualquer perda e glória,
Que nem sequer será mencionada
Na história, virou versos e prosa.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Que posso mais esperar?

Minha vastidão de vida
É dum tédio sem fim,
Pretendo caminho só de ida,
Pra, enfim, dar cabo de mim.

Visto o véu insondável da noite, durmo,
E pela manhã levanto-me num sacode
Acode! Acode! Dia, dê-me rumo!
Mas assim, como quem nada pode,
Não tomo prumo, e logo caem as estrelas,
Recolho-me vezeiro taciturno.
Ao travesseiro, entre tantos pesadelos,
Canto meus mais tristes devaneios.

Maldita vida desdita
Que não sabe se vai ou fica
Destarte, como pode ser-me amiga?
És como a brasa e a pele que nela pica!

Acaso pudesse,
Fecharia os olhos
E gritaria voz que quisesse.
Seria mudo meus poros
Mas saboroso a quem viesse
Ouvir.

Deveria ser diferente!

Deveria ser diferente
Supostamente...
Mas o destino mente
Sinceramente...

Passa a passos falsos,
E aquilo que já não é mais
Vira apenas poeira nos calços...

Queria ainda vestir
Tais belos sapatos
Ou pelo menos sentir
Pouco do passado...

Pra mim? É claro...
Levantar-se!
Me calo.

Caminho então descalço
Faço feridas no duro chão de calos
Machuco-me mas não paro
Assim eu vou e de ti não falo...

A linha 106

Peguei a linha 106. Tudo nela era deprimentemente melancólico. As cadeiras, os passageiros, as fotografias citadinas que se sucediam, apressadamente, uma após a outra pela janela. O ônibus todo estava abarrotado de toda sorte de sentimentos, os quais, quando misturados, consubstanciavam numa única expressão: desamparo.

Sempre tomava a linha 106. Também fazia parte daquele mundo, no entanto, ao invés de pensar em minha própria tristeza, procurava reparar nas alheias, que, para mim, eram sempre mais interessantes que minha própria. Sentava-me na última cadeira do fundo do ônibus, quando esta estava desocupada, e postava-me a fazer daquele cotidiano insuportável um filme, belo e triste.


Conforme as pessoas iam entrando, acomodavam-se sem lógica aparente. Eram frios. Seus rostos lânguidos. Inexpressivos. Fitavam a imensidão de seus pensamentos derrotados postos as suas frentes como capítulos de um filme, cujo termo seria sempre o mesmo. Mesmo assim, eram esperançosos, pois do contrário não estariam ali se sujeitando as agruras da vida cotidiana. Ou talvez sim. As motivações de viver das pessoas comuns são por demais complexas, e eu, em meu lugar, nunca conseguiria compreender semelhante fé no futuro. Gostava de observá-las.


Aquela linha de transporte representava uma ligação entre órgãos corpóreos. Era parte de um sistema sangüíneo que ora fazia papel de artéria, quando bombeava o rico sangue humano das partes periféricas do corpo, levando-o para trabalhar e sustentar a parte central, mais vital e de funções mais “nobres”; ora fazia papel de veia, cuspindo o sangue usado e pobre novamente às regiões da periferia, afim de que estes pudessem se restabelecer com o pouco arroz e feijão de que dispunham. No outro dia, recomeçava o ciclo novamente.


E assim era. Eu, um simples escritor vagabundo, trazia comigo apenas lente e material fotográfico, buscando registrar cada flash de luz que emanava daquela vida. Não tinha que trabalhar – pelo menos não no sentido mercadológico da palavra - o que me dava a possibilidade de analisar de cima os fenômenos sociais que irradiavam daquele pequeno recorte urbano. Anotava cada detalhe em meu pensamento para depois os transcrever em palavras.

O ônibus rasgava veloz as ruas da cidade, recortando as quadras e redesenhando o mesmo polígono infinitas vezes ao dia.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Eu sou a angústia do tempo que passa

Eu sou a angústia do tempo que passa...
Que põe estrelas em movimento
E que colide enormes massas.
Mesmo tão leves como o sopro do vento...

Tempo inexistente quando ancorado
Em cada coração persistente
Que só conhece ilusão e passado
Sem saber de tantos mundos diferentes...

Eu abro meu peito no gume da faca
E tantos outros, assim, iguais ao nada
Nas mãos, só retenho o presente
Passado, futuro é o espaço que me mata...

Regurgita esperança no viver
Quando devorávamos nossos seres
Desfiando belos futuros prazeres
Os quais acreditávamos querer

Sou, serei, talvez te faças ver
Não sei, se fui, há de ser
Distância borrada como sonho
Leva-me num riso tristonho...

Comida do mundo

De tão insensato,
Nem digo.
Porém sinto-me tentado,
Pois digo!
Para além do meu umbigo,
Cabe um mundo inteiro.

Minha infância,
Fora sempre na distância,
Do olfato, do tato, do beijo.
Só me ia, nunca me veio.
E de desforra, sem receio,
Numa bocada comi o mundo inteiro.

Cresci assim, sem o fim, só com o meio.
Afinal, que importa se perto de mim
Existe o começo do mundo inteiro?

Tenho fome de tudo.
Mas quero a comida
Dentro do meu bucho,
E lá encerro minha vida contida.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Razões da escrita

Não sei se escrevo ou sumo,
Corro para além do mundo
Se risco o chão duro,
É com pontapés e murros.

Faz-se tão-somente premente
Livrar os males da mente,
Não vejo nada mais a minha frente,
O mundo perde importância de repente.

Ah! Mundo doente! Ensina-me a ser sorridente!
Ademais, teria outro ensejo a escrever,
Porquanto tudo que vejo me faz sofrer?

As palavras não são compartilhadas,
Jamais ensaiadas e propagadas.
São minhas e delas tiro solitárias gargalhadas.
Porque haja sido da vida comum degredadas?

Longe do costumeiro, ora, vida minha não tem eixo
Caminho de defeitos, palmilhados sem jeito
Deu-se então a escrita sem razão,
Livrai-me, pois, dos males do coração!
Concluo: escrevo e sumo, pois tal é a sina
Em que se vê imiscuída a finalidade da escrita,
Pra então reorganizar o mundo a minha medida.