quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Lá vai um bobo

"Lá vai um bobo!"
Dizem as más línguas.
Ele sorri a torto e direito,
Cumprimenta a todos,
Fala consigo mesmo,
E - o cúmulo do absurdo -,
Canta e dança na rua!

É um pobre coitado,
Não sabe da maldade do mundo,
Não vê ruindade em nada,
Nem malícia em ninguém.
Unas acham graça,
E dele fazem troça,
Outros se condoem,
Como se se condói de uma criança,
Inocente e desemparada.
Mas quando ele passa,
Todos apontam e dizem:
"Lá vai um bobo!"

Por fim, escarnecem,
Sorriem o sorriso dos altivos,
E ao bobo dizem:
"A mim ninguém engana!
Contra a maledicência de todos,
Eu os maldigo por antecedência!
Estou sempre preparado, precavido;
Ora, se o mundo todo é-me inimigo,
Ando sempre desconfiado,
Pronto a dar o troco."

Mas o bobo nem dá por isso;
Segue pelo mesmo caminho,
A cumprimentar de graça,
A sorrir sem motivo,
A cantar e dançar e sozinho;
Mas um dia todos dirão:
"Lá vai um bobo!
Um bobo de bom coração,
Um bobo bom e feliz."

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Fracasso / Vitória

O fracasso ou a vitória
Uma linha tênue
Uma corda bamba
O fio de uma lâmina
De um lado a glória
Do outro a infâmia
Espada de Dámocles
A colecionar cabeças
E são sempre os inocentes
Os primeiros a perdê-las

domingo, 24 de novembro de 2013

O corpo

O corpo
De cada qual, o quinhão no mundo.
A única coisa que se traz na chegada,
E se deixa na partida.
Do ponto de vista, é o ponto;
Substrato de todo ser.
Ao mesmo tempo que comunica,
Isola, separa - é muro,
Que entre o eu e o mundo se levanta.
O que veem estes olhos,
Que a terra um dia há de comer,
Ninguém nunca poderá ver.
E se alguma vez é dado saber de si,
Dificilmente, do outro,
Se sabe alguma coisa com certeza.
Alguém uma vez disse,
Que cada um sabe a dor e a delícia,
De ser quem se é.
Mas quão triste não é,
Não se fazer entender;
E não conseguir sentir,
Na pele, a dor e a delícia alheia.
Eu queria rasgar este corpo,
Me dissolver no outro,
Sentir com a sua mão,
Ver com os seus olhos,
E beijar com a sua boca.
Ser contigo, ser com todos,
Sem corpo, um só.

Estou aqui pra brincadeira

Daquele que faz as coisas de forma bem feita,
Que leva a sério o que faz,
Diz-se que “não está para brincadeira”.
Ora, nesse sentido,
Não se sabe em que se diferencia
O trabalho do ser humano
Do da máquina,
Quando, na verdade, o que nos caracteriza,
É justamente a poiesis grega,
Lúdica e criativa por natureza.
Criar e fazer é, necessariamente, ter prazer.
Por isso, contra esse saber corrompido, eu digo:
Sim, eu estou pra brincadeira!
Sim, eu vim ao mundo a passeio!

sábado, 23 de novembro de 2013

Clara

Não se avexe, não
Branca mais preta
Mineira d’alma africana
De sangue carioca
E ginga baiana
De pés caiçaras
E coração sertanejo
Embora não foste mãe
Deixaste uma nação inteira órfã
Quando ainda tão cedo
Por arcanos do destino
Partiste deste mundo
Deste Brasil tão mestiço
Que cantaste com teu canto
Que encantaste com teu sorriso branco
Que comoveste com teu pranto
Mas a luz que a teus filhos deixaste
Essa clara claridade
Clara guerreira
Não se apaga jamais
Quando tu cantas
Canta também a esperança
A profissão do povo brasileiro

O mal do século

Vejo o celular
Só uma mensagem
É da operadora
Penso em fazer aquela ligação
Prometida há meses
Quem sabe depois

Checo a caixa de e-mail
Só me chegam cartas automáticas
Geradas por computador
Ofertas de produtos
Oportunidades de quitar aquela dívida
Às vezes até me cumprimentam pelo aniversário

Quanto à caixa de correio, nem me dou ao trabalho
Há tempos que por lá só chegam contas
Boletos, faturas de cartão
Chegam também livros
Mas livros não são pessoas

Procuro então no Facebook
Idem, nenhum contato
Paro para ver as pessoas interagirem
Constato, com horror, que eu virei uma espécie de voyeur
Satisfeito a observar as relações alheias
As pessoas parecem estar felizes
Pejadas de vida e de amor
Cada vez mais emocionalmente próximas

Decido sair
Me escoro no balcão do bar
E fico a olhar em volta
Risadas, gestos, beijos, abraços
Comemoram, juntos
A alegria de estar vivo
Tomo meu pileque
E volto para casa
Quem sabe um filme

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O dia

Amanhã é o dia
Amanhã é o grande dia
Porque todo dia é grande
Para quem que crê
Que toda manhã traz sempre um novo dia
Então, para o novo, prepare-se
Como se amanhã fosse o dia
Como se amanhã o grande dia fosse
Porque todo dia não é mais nem menos: é grande e é novo.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Dilema

Eis o dilema de hoje:
Fazer de tudo um pouco, mas não ser bom em nada
Ou especializar-se numa única cousa, fazendo-se bom nela
Ao preço de manter-se cego, ignorante e alienado a tudo o mais?
Aceitar a condição de pequena peça
Desimportante por si mesma, mas indispensável ao todo
Cujo funcionamento se concebe como uma máquina
Ou pretender, ainda que condenado de saída ao fracasso
Tal como os heróis trágicos dos mitos antigos
Abraçar o mundo todo, e tudo que nele existe
Com esses pequenos e tíbios braços de humano?
Difícil dilema, pois se, de um lado, tudo aquilo que chamamos de cultura é necessariamente bom
Quer-se, legitimamente, aproveitar de todo este legado, como é de direito
Embora, de outro lado, se cada um de nós se satisfizer em ser um diletante
Correríamos o risco de botar freio nesse processo, de empacar e não ir além
Em suma, ser tudo é não ser nada, e não ser nada é ser tudo
Como resolver essa dialética?
Critica-se hoje a especialização burra, advoga-se a interdisciplinaridade
Mas, na prática, fazemos tudo ao contrário
Aquela erudição culta, aquele saber enciclopédico
O traço distintivo do tempo das luzes, não existe mais
Um dia matamos Deus, só para nos colocar em seu lugar
Agora matamos a nós mesmos, e, caídos, tornamo-nos fatalistas, niilistas, cínicos
Tal como as peças de uma máquina seriam se tivessem a faculdade de pensar
Eis aí outro dilema fundamental, que se não resolvido, não se resolve o primeiro: como colocar, no lugar dos caídos humanos deificados
Humanos humanizados?

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Tal vida, tal memória

Tu já paraste para pensar
Que tipo de memórias quererás ter
Quando a velhice avizinhar-te?
Não queres que teu melhor amigo
Seja um super-herói de desenho animado, não é?
Ou de vídeo-game, que seja
Nem que as aventuras que tenhas vivido
Tenham se passado em filmes hollywoodianos
Num sábado monótono (para não dizer solitário)
Muito menos que tuas histórias de amor
Tenhas vivido na pele de personagens sofríveis dalguma novela besta
Quando chegar a hora da morte
Que passará em revista pela tua cabeça?
Tu, sentado ao sofá, assistindo à tevê?
Mas eu não lhe digo para que imites a arte
Se é que é possível dar tal qualidade
A esse monte de bobagem televisiva
Que nos empurram diariamente
Não; exorto-te para que faças arte!
Para que vivas a arte!
Para que desatines dias desses!
Para que te percas por aí, sem norte!
Em lugares que nunca estiveste!
Fazendo coisas que nunca imaginaste!
Beijando bocas que nunca beijaste!
Acredite em mim quando lhe digo que é desse tipo de memória
Que quererás ter na hora da morte
Se não for para tê-las
Se for para ruminar essa existência bovina
A vida, de que vale?

Família desfeita

Entre uma tarefa e outra que faço
– Uma roupa que lavo,
Um chão que esfrego,
As galinhas que alimento
Algumas roupas que remendo –
Me pego pensando em você
Lembrando o que foi, e o que haveria de ser
Mas que o destino fez questão de frustrar
Lembra-se da primeira vez em que nos vimos?
Você todo tímido, desenxabido
Faltou-lhe coragem para me tirar pra dançar
Eu percebi, mas também não sabia o que fazer
E não é que depois de muito ensaio
Depois de muitas olhadelas de soslaio
A gente resolveu arriscar uns passos acabrunhados?
Você estava tão embraçado
Que eu perdi as contas de quantas vezes meu pé foi pisado
E eu nem senti, porque não conseguia parar de olhá-lo
Toda boba, admito
Éramos jovens, inocentes e esperançosos
Apaixonar-se era fácil
Mas agora isso
Este teu sumiço
De novo só tem feijão no fogo
E eu, o que devo fazer?
Você andará por onde?
Tinha que se meter na cidade grande?
Tanto pior no estrangeiro!
Lá longe, tão longe que eu não saberia dizer quanto
Lá se vai um ano – um ano inteiro! –
Sem notícias, sem saber teu paradeiro
Terá arrumado uma nova família?
Terá sido preso?
Ou pior, morto?
Onde estará você homem de deus!
As crianças estão crescendo
E a situação piorando
Tenho pensado em deixar o vilarejo
Aqui não há mais nada para nós
Não há mais terra, nem trabalho
Só miséria e sofrimento
Será que você estava certo desde o começo?
Mas eu tenho medo, eu tenho medo
Que será de nós, querido?
Que será da nossa gente
Que dia a dia, inescapavelmente
Perde o pouco que tem?

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Cavalgada

A pélvis gira, elíptica
Em torno de seu próprio eixo
Voluptuosa, sinuosa
Como o balé de um tornado
Puxando, sugando, lançando tudo aos céus
As palmas das mãos apoiadas sobre o peito
As unhas prontas a agarra-lo
Os olhos virados, a cabeça inclinada
Algumas madeixas, úmidas, se apegam à boca
O queixo cai, trêmulo, em êxtase
Pelo ricto dos lábios escorre um fio de saliva
A pélvis freme, sôfrega, convulsiva
Em contrações espasmódicas
Vai para frente, e volta
Sobe e desce, não se decide, rebola
Para, recomeça outra vez
Depois se contrai, se contrai, com força
Aperta, aperta, até não poder mais
Até que enfim solta, repousa
Junto com um gemido
De ai

Ode à mediocridade

Longe de mim querer carregar o fardo dos eminentes,
Dos notáveis, dos super-homens nietzschianos;
Vistos com ciúmes e respeito, misto de inveja e enaltecimento;
A vida inteira chamados a prestar contar sobre seus atos,
Menos pelos outros do que por si mesmos;
Implacáveis, constantemente ocupados com seus legados,
Mas solitários, abandonados à própria grandeza.
Felizes aqueles que mantêm suas expectativas baixas;
De quem não se espera nada além da média;
Que podem dar-se ao luxo de errar sem vergonha ou culpa;
Que não precisam provar a todo o momento a dignidade de sua posição;
Que ao invés do mundo aos seus pés, têm ombros emparelhados ao seu lado;
O que me interessa é ser apenas uma pessoa normal, com seus erros e acertos;
Apenas mais uma entre outras tantas, anônimas na multidão;
Medíocres, mas satisfeitas.

Nunca mais

Quando acordo pela manhã
A sua metade da cama ainda está arrumada
Acostumei-me a dormir só de um lado
Mas seu travesseiro está sempre nos meus braços
Ou entre as pernas, ou sob o peito, comigo abraçado

Quando vou ao banheiro escovar os dentes
Vejo uma única escova que sob a pia jaz solitária
A sua, que com a minha fazia um par, não está mais lá
E eu noto que agora me habituei a fechar o tubo da pasta
Agora que não tem mais importância

Quando sento à mesa para o desjejum
Sirvo somente uma xícara de café, amargo
Por mais que eu me esforce, ele não fica como o seu
Do outro lado da pequena mesa, à minha frente
Sua cadeira permanece vazia, imóvel, silenciosa
Quem sabe se na mesma posição em que você a deixou?

Quando vou sair para trabalhar
Penso em deixar a porta aberta, para o caso de você querer entrar
Mas depois lembro que se você me entregou a chave
Foi para nunca mais voltar
Por via das dúvidas, deixo a chave dentro do vaso de lírio
Ou sob o carpete que diz "bem-vindo"

Quando chego em casa
Depois de um dia de trabalho – inútil, mecânico, absurdo
Tento abrir a porta de supetão, sem a chave
Como se você estivesse lá, mas não, você não está
E ainda que eu tocasse a campainha de nada ia adiantar

Só o seu pequeno jardim na sacada ainda resta
Mas não importa o quanto eu regue as suas plantas
Elas continuam a murchar, a perder o viço
Nunca mais a sua orquídea preferida deu uma só flor sequer

Nunca mais alguém conversou comigo através da porta do banheiro
Nunca mais coloquei o colchão na sala para assistir a um filme
Nunca mais contemplei o por do sol da sacada, fumando um baseado
Nunca mais calcei o seu chinelo porque não conseguia encontrar o meu
Nunca mais...

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Instante

Este tempo
Não o de ontem
Nem o de amanhã
Mas o de hoje
De agora
Deste exato momento
Tem gosto de morte
Tem o ruído do silêncio
Tem o canto do cisne
Só que mudo
Ninguém fala
Tampouco ouve
Nem um sussurro
Nem um único murmúrio
É sepulcral
Como o túmulo
Até o coração para
Em suspenso
No vácuo
É a plenitude
O eterno absoluto
Que acontece se se move?
Que vem depois
Quando o instante
Põe-se em movimento?

Sussuros

Há dor
A-dor-
ah!
A-ma-
nhã

verá?

Depressão

Depressão não é tristeza
É um mal insidioso
Que da gente se apodera
De vagar, aos poucos
Sem dar bandeira
É como uma doença silenciosa
Espalhando-se pelo corpo
As ideias envenenando
Os nervos paralisando
Obscurecendo a mente
Haurindo a energia
Enquanto não se se dá conta
Ela vai tomando corpo
A feição monstruosa
A horrenda face
Do medo e da angústia
O que resta é um corpo inerte
Sem vida, pura apatia
À agonia entregue
De ser prisioneiro de si mesmo

Tumulto

Certos momentos
De extrema felicidade
Ou de fundo sofrimento
Me acomete uma doida vontade
Uma explosão de sentimentos
Que se propaga pelo corpo
Como uma tempestade
Que me invade, em ondeadas
Provocando um tumulto confuso
Nesta alma já atormentada

Tenho vontade de gritar
Aos quatro ventos
Tão alto e tão forte
Que fizesse a terra chacoalhar
Como um abalo sísmico
Que deslocasse seu eixo
Que abrisse as vagas do mar
E no seu doce leito
Eu pudesse descansar

Vontade de correr a eito
Até os músculos estourar
De brincar com o vento
Nas asas de um pássaro
Livre, por aí a voar
E a um só tempo
Em todo lugar estar

Ah, vontade de abrir meu peito
Com a unha dos dedos
E mostrar a todo o mundo:
Vejam, aqui bate um coração!
Que sofre, que tem medo
Que sente sede de paixão
Vejam como ele bate forte, rijo!
Como sangra em borbotão!
Vamos, dê-me sua mão
Está sentindo-o?
Pois eu não

Retirante

Trajando andrajos imundos
Vagando por estradas sem rumo
Uma procissão de miseráveis
Calados, abatidos, macambúzios
Trabalhadores, camponeses, sem-terras
Homens que nada tiveram
E, não se sabe como, perderam tudo
Mulheres lavadeiras de trouxas na cabeça
Crianças de ventre saliente
E mãos nodosas de adulto
Trazem os corpos cobertos de poeira
Que, dir-se-ia, valem-lhes de segunda pele
Sobre a primeira
Prematuramente envelhecida
O pó substitui a roupa quase inexistente
Meu Deus, são famílias inteiras!
Acostumadas àquele sol inclemente
Às agruras daquela terra
Seca, dura, exangue
Que com lágrima e suor é lavrada
Eles caminham, em meio a mandacarus
Umbuzeiros e xiquexiques
Esperançosos de que haverá futuro
Nas ruas agitadas da cidade grande
Tratar-se-á de esperança, de fato
Ou seriam como uma manada
Agindo por puro instinto?
Fugindo da morte que lhe acossa
Afinal, e isso importa?
Se na selva de pedra serão também a caça
De homens-fera sem escrúpulos?
Não, a esperança que sustentam
Não está na ida
Antes está na volta
Crentes de que, um dia,
A seca há de ir embora
E a sua terra outrora sem vida
Haverá de renascer como a aurora
O cacto florescerá
A macaxeira crescerá
O gado engordará
Então o retirante irá voltar
Quando o sertão fizer-se mar

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Filosofia antiga

Não sejas como um caracol
Que quando tocado
Foge entocando-se em sua concha
Não sejas como um tatuzinho
Que quando se sente ameaçado
Em torno de si mesmo se fecha como uma bola
Não sejas como certas espécies de besouros
Que, para desbaratar possíveis predadores
Paralisam-se e fingem-se de mortos
A qualquer um que se acerque
Não sejas como um porco-espinho
Que fere com mil aguilhões
Quem só queria sentir-te o corpo
Dar-te um abraço
Estar por perto
Juntinho
Sejas como um cardume de peixes
Como uma matilha de cães
Uma manada de elefantes
Abelhas numa colmeia
Tenha perto teus semelhantes
Não te escondas
E não tenhas medo
Da solidão

domingo, 10 de novembro de 2013

Memória

Cansei de brigar com você
Desisto, jogo a toalha
Compreendo agora o seu poder
Você me possui, admito
E conforme o tempo passa
Isso fica cada vez mais claro
Você, dona Memória
É senhora do meu destino
Por isso, eu lhe imploro:
Não se vá, fique comigo!
Sem você, eu não sou nada
Sem você, me sinto abandonado
Não me deixe neste presente sozinho
Não me deixe esquecer o passado!
Que parece mais e mais distante
Como a costa se vê do navio
Sumindo na linha do horizonte
Os traços então se confundem
Os conteúdos tornam-se indistintos
E já não mais se sabe o que é o que
Que aconteceu naquele dia fatídico?
Quem dera o primeiro beijo atrevido?
Terá sido eu ou terá sido ela?
É tão fraca a luz que vem da vela
A bruxulear no canto da sala
Ah, senhora Lembrança!
Não me deixe esquecer os sorrisos
Tão lindos que vi por essas andanças
São tantos os rostos queridos
Que até da memória se vão
E já não importa
O quão fundo eu vascoleje a cachola
Eles agora não passam de um borrão
Eu não posso vencê-la, Memória
Mas, por piedade, por compaixão!
Não tire de nós, humanos sofridos
O pouco do pouco que nós temos
No final, tudo o que nos resta é a memória
Perdê-la seria como não ter vivido
E de que vale passar por tudo isso
Se não for para depois contar a história?

sábado, 9 de novembro de 2013

Poesia ao poetinha

Ah, meu poetinha!
Só tu me compreendes
Tu, que morreste de amores
E de amores viveste
Ensina-me como ver alegria
Num mundo triste como este

Agora quem pergunta sou eu:
Que lhe disse a poesia?
Que viu você por trás do véu
Que dos vivos a verdade esconde
Como a noite esconde o dia?
Afinal, do alto deste céu
Que lhe parece a vida?

Ensina-me a arte que dominaste
Com exímia maestria
A de fazer da dor, poesia
De prantear o amor que se ia
Sem num só instante
Perder a fé no outro que viria

É desta qualidade
Tu sabes, poetinha
Que se faz um verdadeiro vate:
Ver na tristeza sua bela face
E dela fazer-se amante
Sem deixar o riso de parte
Não é desta espécie de sabedoria
Da qual é feito o vate?
Então ensina-me, poetinha
Ensina-me a tua arte!

Tu, camarada
Que tantas alegorias viste no mar
Olha pela minha nau a deriva
Que, mesmo sem saber velejar
O desconhecido infinito singra
Atrás de um lar, atrás de paz
Tendo como único guia
As palavras sem par
Do meu poetinha camarada
Vinícius de Moraes

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Soledade

Soledade é o nome da minha esposa
Com quem nunca fui perdidamente apaixonado
Mas junto da qual o acaso levou-me a unir em casmento
Com seus altos e baixos, suas alegrias e tristezas

Mas Soledade é também o nome da minha amante
A quem vez ou outra me entrego loucamente
Em arroubos febricitantes de desejo
Até quando, vendo-os satisfeitos, volto a recusá-la
E novamente sinto que a odeio

Ah, afinal, Soledade é o nome da minha companheira!
Ao lado de quem envelheço
Enfrentando o ramerrão da rotina rotineira
Sempre em sua dedicada companhia
Tendo a certeza de que ela não me abandonará
Até sermos dois velhinhos bobos
Que já foram apaixonados
Que já se odiaram
Mas que nunca se separaram
Porque, no fundo, se gostam
Mais até do que imaginam
Até que o dia da morte leva tudo isso embora
E de toda nossa história
Restam apenas duas covas
Sobre as quais registra-se o seguinte epitáfio:
Juntos em vida
Juntos na morte

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Lágrima

Ó, inelutável lágrima!
Borbota da fronte
Vinda das funduras da alma
Brota como uma fonte
De águas claras e calmas
Rola pelos vales e montes
Do rosto, a água salobra
Carreando a dor para longe
Indo desaguar na boca
Que até a última gota
Do mar consome

Ó, irreprimível lágrima!
Às vezes intempestiva
És como uma avalanche
Que aos borbotões se precipita
Outras, és doce e branda
Como rio de águas mansas
Brincando com os vincos da pele
Qual alegre criança

Ó, inevitável lágrima!
Que nas pálpebras se equilibra
Indecisa se ao abismo se atira
Ou se se recolhe, tímida
Para o âmago de onde saíra

Vai, lágrima
Escorra
Pelo rosto
Se lhe compraz
Deixa, na boca
O salso gosto
Que me é contumaz
Vai, lágrima
Corra
Vence o desgosto
Como só tu é capaz
Lava a alma
Redobra a fé de novo
E meu coração preencha de paz

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Sina de poeta

Ah, se não fossem as palavras!
Em que solidão muda eu padeceria?
Sem meios de exprimi-la,
Não haveria como expiá-la;
E, sem compreendê-la,
Como aceitá-la?
Curioso paradoxo este da solidão,
Que precisa ser comunicada,
Ainda que seja a um papel em branco.
Será um pedido de socorro,
Como uma garrafa lançado ao oceano?
Ou uma forma de ver,
Espécie de espelho da alma,
Aquilo que à felicidade escapa?

Sermão de Bienvenu Myriel (Ou: por onde a falta passou?)

Quem sois vós?
Que se arvora em juiz
Sem deixar de ser parte
Apoiando-se no nome de falsos deuses
Para acusar de erro, de vilania
Para cobrir de infâmia e de opróbrio
Um semelhante a ti
Que sofre, que chora
Que tem medo
Que sente frio e fome
Enquanto você refestela-se
Açambarcando a graça que Deus deu
A todos nós?

Quem sois vós?
Para falar da ignomínia alheia
Enterrado até os pés
Como estás,
Na lama mais fétida
Que preenche o fundo poço
Da alma humana
Capaz, sem pestanejar
De cometer atos
Tão ou mais perversos
Do que teu irmão
A quem acusa de inimigo
Por não compartilhar contigo
De sua suposta humanidade?

Quem sois vós?
Que se crê senhor da razão
E do dono da vontade
Que assoma soberbo
No pedestal da História
Tendo sangue aos teus pés
Ocupado demais em condenar
Para olhar a si mesmo
Comprazendo-se em apontar o dedo inquisidor
Sujo, besuntado de iniquidade
Na fuça dos humilhados
Dos oprimidos e derrotados
E ainda afirmar-se justo?

Será que não vês nele
Naquele que recusa
Naquele que fora
Desde o berço, privado
Vilipendiado,
Tua própria imagem
Falsa e hipócrita
Refletida em seu olhar
De animal acuado?

A felicidade que roubas dos outros
Restitue-se-lhes em humanidade
E concede-lhes a força
E o direito sobre o Futuro
Que eles ainda hão de herdar
(Ou seria tomar das mãos de teus filhos?)
E, então, de cabeça altiva
Caminharão sobre teu cadáver
Despido, esquecido
Sem direito sequer a uma lápide
A uma nota de rodapé
Que eternize seu nome
Senão como de fato fora:
Mau, indigno

Há rosas no jardim

Em torno de ti
Mágoa, que habita meu coração
Eu construo uma cerca branca de saudade
Cerco de mimos e cuidados a sua lembrança
Lavro a terra com a carência de sua presença
Semeio-a com a falta pungente que me fazes
Cultivo com carinho o jardim da sua ausência
E as rubras rosas que dele nascem
Eu chamo de solidão

Antinomias

Vá entender esse mundo maluco!

Onde muito sobra
E tudo falta

Onde há fartura
E a satisfação é escassa

Onde a felicidade é paga
Mas a agrura é dada

Onde a lei impera
Só que a injustiça é a regra

Onde reina a miséria
Em meio a tanta riqueza

Onde a feiura é beleza
E a beleza não é bela

Onde o forte goza
Enquanto o fraco chora

Onde quem tem manda
E quem não tem apanha

Calado, cabisbaixo
Alguém me explica
Porque tudo caminha
De cabeça para baixo?

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

É hora

Bora, que é hora
Que a hora é agora
Vam’bora, fazer a hora
Que ela é todinha nossa
E o que não nos falta é bossa
Pra pintar a cidade de rosa
Ora, então simbora, rapá!
Acorda, não perde a hora
Que nosso bloco vai passá
Em pé, sem demora
Pois o mundo dá volta, camará
Você mais eu, mundo afora
Deixa o outrora pra lá
Que já já a história vai começá
Bora, simbora
Amanhecer numa nova aurora
Canta, ama, brinca, goza
E se quiser, chora
Só não se esquecer vá
Que tudo melhora
Que tudo há de melhorá
Pode acreditá
E só quem viver verá!