terça-feira, 27 de agosto de 2013

Rugas

O rosto de couro vincado
Diz muito d’alguém
É como mapa do tesouro
Indicando os passos vacilantes
Sentido ao “x” da vida
Que todo viandante
Necessariamente trilha

O semblante de pele sulcada
É como um pergaminho
Onde a pena do tempo vinca
As tortas linhas de seus descaminhos

Podem ser efeitos de muitos sorrisos
Porque nem toda ruga é de preocupação
Ou podem ser da lida no sol a pino
As marcas da humana servidão

Podem ser simples sinais da idade
Que não avisa nem pede permissão
E que muita gente por fútil vaidade
Tenta esconder como a um borrão

Não se deve ter vergonha
Dessas cicatrizes que o viver imprime
Ao contrário, deve-se ter-lhes honra
Pois são como assinaturas únicas
Escritas na face e na carne
Assinaturas que dão o som
O timbre, o ritmo e a harmonia
Da música pessoal de cada um
Como um vinil a tocar a nossa vida

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Não entendo

Eu entendo o que entendo.
Para mim, algumas coisas são entendíveis,
outras não o são.
À você que não entende,
eu explico:
pare de querer me fazer entender o que eu não entendo.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Carta de alforria de um cidadão de saco-cheio

Por meio desta carta, faço saber a todos que estou partindo. Deixo esta vida miserável e aborrecedora para trás com o coração alegre e a consciência aliviada. Chega de escrivaninhas, arquivos, formulários, precatórios, protestos, petições, cartórios, protocolos, autos, despachos, embargos, mandados, processos. Chega de barba feita e cabelo impecavelmente alinhado. Chega de palavras de tratamento obsequiosas. Chega desta maldita gravata, deste sapato petulantemente engraxado, deste terno presunçoso, destas maneiras enfatuadas. Chega de jantares solenes, requintados, onde todos estão ocupados demais em pavonear-se para poderem ser sinceros de fato, blasonando um ar afetado de importância, como se fossem pérolas num mundo de porcos. É patético.

Enfim, chega desta vida vazia, de sorrisos falsos, de condutas simuladas, artificiais, de frases hipócritas. Esta carta é de alforria, mas podia ser de suicídio, porque vou tratar de matar minha antiga vida. Vou viver aquela que sempre sonhei, sem norte, indo aonde meu nariz apontar, com um violão debaixo do braço e um cachorro vira-lata ao meu lado. Nunca quis ser advogado, muito menos juiz. Formei-me em direito por razões exteriores a mim mesmo, aquiescendo às instâncias de meu pai, que era magistrado, tal qual o pai dele fora e assim por diante. À época, disseram-me que eu era ainda muito jovem, que não sabia nada da vida, que eles sabiam o que é melhor para mim. Agora, passados todos esses anos, não saberia dizer porque, uma vez satisfeito essa injunção, continuei pelo mesmo caminho, sem olhar para trás. Como foi possível esquecer-me de todos os sonhos de juventude? 

Não sei. Sei apenas que, num belo dia, acordei. Por acaso, enquanto vasculhava algumas caixas guardadas, ou melhor, esquecidas no depósito, deparei-me com um velho caderno dos tempos da faculdade, no qual escrevia crônicas e poesias, além de um diário. Era aí, no mundo das palavras e do papel, onde eu podia ser quem eu sou de verdade. Ler aquelas linhas preciosas foi como ter uma epifania. Me senti atordoado, como se tivesse levado um saco na cara. De repente, vi-me num emprego de merda, vivendo uma vida familiar de fachada, e neste dia compreendi que eu sou infeliz, que eu me tornei o que mais desprezava. Portanto, compreende-se que eu não possa mais continuar deste jeito.

Carla, é preciso que você saiba, agora que eu compreende tudo, que me casei com você por conveniência. Sempre achei que você era a mulher da minha vida, que havíamos nascido um para o outro, mas estava enganado. Casei-me contigo porque você tem sobrenome de alto preço, porque você advém de uma família tradicional, poderosa e influente sobre a vida política da região. Além disso, porque você é gostosa, formosa, o tipo ideal de mulher padrão. Você me vestia como uma roupa. Diziam que formávamos um casal lindo – estavam certos. Lindos por fora, podres por dentro. Sempre achei que os problemas conjugais que enfrentávamos eram normais, coisas pelas quais passa todo casal, e conosco não seria diferente. Enfim compreendi que existia algo além disso. Nunca compartilhamos nada exceto o apego à riqueza, ao prestígio, ao conforto e facilidades de quem vive na cobertura da hierarquia social. Mas não se preocupe. Deixo-lhe tudo o que você realmente ama: casa, apartamento, carros, ações. Para onde irei não preciso de nada disso.

Mãe, peço-lhe que, se possível, compreenda os motivos de seu filho, e se não for possível que ao menos o perdoe. Sei que, no fundo, a minha felicidade é o que mais lhe importa. Pai, sei que jamais ser-lhe-á possível sequer sentir o que eu sinto; não obstante, o que eu faço hoje, o faço por nós dois. Compraz-me cuidar que, se tivesse tido você esta oportunidade, agarrá-la-ia com o mesmo delírio que eu a agarro neste momento. Meus filhos queridos, no meio de toda essa desventura frustrada que é a minha vida, vocês foram a única coisa boa que me aconteceu. Por vocês eu faria tudo de novo; eu seria infeliz sem pesar apenas pelo fato de que essa infelicidade me deu vocês. Sem vocês nada disso teria valido a pena. Agora que já estão crescidos, deixo-os aos cuidados do mundo. Sei que me farão orgulhoso. Quanto ao resto da família, aproveito a oportunidade para manda-los à merda. Não me procurem. Por fim, aos funcionários do escritório peço desculpas por deixa-los desempregados, porém não sem antes agradecê-los na medida do possível: todos vocês terão uma agradável surpresa no próximo pagamento. 

Bom, creio que é isto. Hora de dizer adeus. Embora odiando a minha vida, amo as pessoas que fizeram parte dela. Entretanto, agora uma nova vida me espera. Com novas pessoas, novas histórias, novos amores, novas amizades. Como dizem por aí, o mundo é a minha concha. E dá próxima vez que cruzarem com um sujeito esfarrapado, aparentando fome embora de sorriso aberto e gratuito no rosto, tocando violão em troca de trocados, parem e deem-lhe um pouco de atenção, porque pode ser seu filho, seu pai, seu ex-marido.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O mar

Vontade de nadar
Pra longe da costa
Pra dentro do teu mar
Nadar livre
Sem receio
De me afogar
Quando faltar o ar
No teu beijo
De mergulhar
Em seu seio
O vasto véu ondulado
Quando me cansar
Vontade de partir
Pra nunca mais voltar
Em ti submergir
Sem tornar a respirar
De sair deste raso
De ter o pé plantado
Neste plano chão
Feito coqueiro, calado
Quero ser barco
Vencer a rebentação
Quero dar braçadas
Feito peixe n’água
Ir e não olhar pra trás
E a essas praias
Não retornar jamais

Dois em um

Será que se eu te liquefazer
Verter teu caldo sobre mim
E bebê-lo até de bêbado cair
Saciar-me-ei do teu querer?

Alentar-me-á o teu corpo líquido
Transfundido ao meu, quase morto
Tal como o sangue novo e viçoso
Revigora um paciente enfermiço?

Será que se eu apertar você
Com toda a força que tenho
Sufocá-la contra o meu peito
Fundir-nos-emos em um só ser?

Tornar-nos-emos dois átomos a ocupar
O mesmo espaço, tal como dois rios
Passam a ocupar o mesmo leito
Quando juntos vão em direção ao mar?

Será que se nós nos explodirmos
Teremos infinitos pedaços nossos
A semear essa terra carente de carinho?

Ou talvez voaremos juntos ao vento
Alto, bem alto, até os limites do espaço
E como estrelas viveremos até o fim dos tempos?

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Epitáfio

Aqui, coube o corpo
    que sobre o mundo nunca coube
Assim, deu-se jeito
    num sujeito sempre sem jeito
Enfim, chega ao fim
    a busca sem-fim que nunca chegou de buscar
Desta jazida, despede-se da vida
    quem fez dela a arte dos encontros e das despedidas
Sem lágrimas nos olhos, ele se recolhe,
    nesta cova, ao colo da nossa Mãe-Terra piedosa
Parte e vai embora, levando consigo
    o canto triste que cantava seu espírito partido
Espera, esperançoso, ter deixado esperança
    nas encruzilhadas por que passou em suas andanças

O circo

Não se fazem mais pessoas como antigamente
Dessa gente, mal educada pelo cinema, tevê
O circo não mais tira sorrisos nem gargalhadas
Do picadeiro, graça alguma ninguém vê
Das crianças, os olhos que faiscavam magia
Não faíscam mais, nem uma chispa de fantasia
Pensam apenas no game inutilizado em casa
E suspiram: circo é chato por demais!
O leão anda magro, de pelo desgrenhado
E seu rugido não mete medo nem num gato
O palhaço nem meia colorida tem, coitado
Com que vestir o sapato de solado remendado
O macaco trapezista perdeu o vestido de chita
Que tiveram que empenhar a um arrivista
E este já mandou dizer que, se não pagar,
Manda um batalhão de advogado o circo fechar
O elefante não toma banho já vai um ano
E para pô-lo no palco dão-lhe desinfetante sanitário
À contorcionista, restou um collant em frangalhos
Que quando ela se contorce deixa ver a cor da calcinha
E o que dizer do trapezista, cujo único seguro
São os braços do Homem Mais Forte do Mundo?
O grande circo Moscou já viu dias melhores
Por ele não circulam mais enamorados jovens
Rapazes e moças não se dão mais os braços
E suas mãos não mais se encontram por acaso
No fundo de um saquinho de pipoca furado

O equilibrista

A vida de um equilibrista
Está sempre por um fio:
Sustentada por uma linha,
Encimada sobre um abismo
Bamba e ao mesmo tempo firme
Ela balança, solitária, no vazio

Ai dele se não segui-la à risca!
Ai dele se lhe falta tino!
Cuidado, equilibrista,
Muito cuidado onde pisa!

Vida de equilibrista é um sufoco
Ela toda depositada num único risco
Prende a respiração quando o rufo soa
Segura-se nas cadeiras o público do circo

Se, num átimo, perde-se o rumo
Se com o prumo põe-se em desalinho
O corpo bamboleando, braços estirados
Os espectadores, sobressaltados
De susto, suspendem o sorriso
Cuidado, equilibrista!
Muito cuidado onde pisa!

Perfazendo sempre o mesmo caminho
Para onde irá o equilibrista?

Ganhando a vida com malabarismos
Por que será que se arrisca?

Apostando a sorte num tênue fio de um só sentido
Chegará ele ao outro lado vivo?

Cuidado, equilibrista!
Muito cuidado onde pisa!

domingo, 4 de agosto de 2013

A brevidade da vida

Se à vida cabe uma única definição,
    esta seria a brevidade, a concisão;
A capacidade de escapar-nos pelos dedos
    no preciso momento em que cremos
    agarrar-lhe por ambas as mãos.

Tal como a areia dos tempos,
    esvai-se inexoravelmente pelos vãos
    de vários e fugazes momentos.
A vida foge de nós em dispersão;
Para longe ela cavalga, alada,
    nas costas dos quatro ventos.

Foge a outras searas,
    aonde não haja sofrimento;
Leva consigo sementes e andorinhas;
Foge a outras pradarias, outros chãos;
Para longe deste inverno cinzento,
    e toca semear um novo verão.

sábado, 3 de agosto de 2013

Ainda que...

Ainda que tivesse mais tempo
Ainda que houvesse outro jeito
Ainda que não tivesse defeito
E que eu não fosse eu mesmo...

Ainda que houvesse recomeço
Ainda que fosse de novo rebento
Ainda que renascesse em outro berço
E que tentasse de novo pelo avesso...

Ainda que eu fosse menos desatento
Ainda que não me vencesse o desalento
Ainda que vivesse a vida a contento
E que o céu fosse menos cinzento...

Ainda que pudesse ser mais sincero
Ainda que o mundo não fosse severo
Ainda que vivesse a vida sem receio
E que tudo deixasse de ser efêmero...

Que tudo fosse belo e nada fosse feio
Que tratássemos uns aos outros com respeito
Que cabimento não tivesse o desespero
Que não houvesse motivo para ter medo
Que o coração transbordasse pleno e cheio
Que o próspero não se medisse em dinheiro
Que a felicidade não se expressasse em número
Que o amor não fosse mísero mas um exagero
E que meus braços fossem vastos e meus beijos intensos
O suficiente para alcançar o mundo inteiro...

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Viandante

Fazer tudo,
não por inteiro,
mas pra dar em nada.

Deixar as coisas
pelo meio,
e não retomá-las.

Ser eterno começo,
eterno recomeçar,
sem chegada.

Apenas caminhar,
pelo prazer de
caminhar.

Estar aqui hoje,
e amanhã
noutro lugar
qualquer.

Fazer isso agora,
aquilo depois,
mas nada completar.

Andar por andar,
sem objetivo,
sem sentido,
sem nada almejar.

Nem ser,
nem estar:
apenas passar.

E, quando morrer,
como não houvesse existido,
por nada serei lembrado.

Serei simplesmente engolido,
cancelado,
suprimido
nas dunas do tempo passado.

Assim me regozijo,
assim me satisfaço.

Essa será a obra
– inacabada,
desnecessária,
irrelevante –
da minha vida,
como outras tantas
histórias esquecidas
foram um dia.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O nóia da vila

Na minha rua tem um nóia. Tem um nóia na minha rua. Um sujeito tão curioso que merece uma crônica. De fato, não se trata de um nóia convencional. Confesso que até pouco tempo não me condoía um nóia todo estropiado que por ventura encontrasse na rua. Condoía-me um trabalhador pedindo dinheiro, uma mãe portando uma criança à tira colo sem ter o que comer. Simpatizava-me mais com um bêbado esmolando uma dose de cachaça do que com um nóia.

Por falar em bêbado, lembro que, certa feita, necessitando de leda e fósforo, entrei num daqueles botecos fuleiros tipicamente frequentados por bêbados dos mais vagabundos e, antes de sair, fui abordado por um deles solicitando-me que lhe comprasse um corote. Não me fiz de rogado e mandei descer o corote pro tio. Não consigo descrever a alegria que ele sentiu diante de tão generoso auxílio para com um suicida – ou seria simplesmente por ter nas mãos o corote? Seja como for, o bêbado desdobrou-se em elogios à minha pessoa, e assegurou-me que eu era amigo dele de “mili ano”. Mas quando lhe pedi um trago, o sujeito fechou a cara no ato, olhando-me desconfiado enquanto afastava o corote puxando-o para o seu lado. Eu, indignado, retruquei: “porra, acabei de lhe comprar esse corote e você, mal agradecido, não vai me dar um trago?” Ao ouvir tal irreplicável argumento, o tiozinho desarmou-se e abriu um sorriso largo no rosto, passando-me o corote. E eu percebi que bêbados são capazes de compreender argumentos simples.

Mas voltando ao personagem principal desta história – o qual, sendo simplesmente nóia, não entra na categoria “nóia-alcoólatra” –, chamá-lo-emos de Honório, a fim de preservar-lhe a identidade verdadeira.

Como ia dizendo, na minha rua tem um nóia, mas não sou eu que o digo, é ele próprio. Segundo consta, no dia em que meu amigo e companheiro de moradia há sete anos mudou-se para a casa localizada na rua do nóia (antes de eu vir morar com ele), este acercou-se dele apresentando-se da seguinte maneira: “muito prazer, eu sou o nóia da vila”. Quando tomei conhecimento desse fato, meu conceito em relação ao Honório, confesso, subiu alguns bons degraus. Sujeito sincero, sem vergonha, íntegro. Tudo bem, íntegro já foi exagero e bondade da minha parte, mas sincero e sem vergonha ele é, e isso já faz dele um sujeito melhor do que muitos patrões, políticos e magistrados por aí. E isso porque Honório não tem vergonha de ser sincero, e é sincero porque não tem vergonha. Qualidade rara essa. Não lhe peja sua condição de nóia e vagabundo, condição que, aparentemente, foi escolhida livre e conscientemente por ele. Daí porque ele é um sem vergonha (no sentido que se diz às pessoas que não querem trabalhar). Em suma, o nóia da vila está muito bem resolvido com sua opção de vida, e vai muito bem como nóia, obrigado.

Não sendo trabalhador, resta-lhe pouquíssimas atividades com as quais arrecadar fundos a fim de sustentar seu vício. Uma delas é o furto. Mas Honório garante que não o pratica, e, a julgar pelo que eu vejo, sou levado a acreditar nele. Nada indica que o nóia da vila pertença à categoria “nóia-ladrão”. Na verdade, se fosse para enquadrá-lo em uma categoria específica, esta seria “nóia-empreendedor”, por mais estranho e curioso que isso pareça. Com efeito, Honório é praticamente um homem de negócios. Ele investe no setor de “bens descartados e achados na rua”. Seu negócio funciona da seguinte maneira: ele vaga pelas ruas da cidade atrás de itens velhos e/ou indesejados, descartados por seus donos, mas que podem ser reaproveitados por outros. Tal como um bom empreendedor, Honório farejou aí um mercado e deu entrada nos negócios.

Ele já me apareceu aqui em casa vendendo mercadorias das mais variadas espécies, desde revistas e livros, passando por LPs e CDs, até sapatos furados, carrinhos de controle remoto sem controle remoto e – pasmem! – garrafas de whisky sem whisky. Trata-se de um comerciante eclético, à semelhança dos antigos biscateiros, que iam de porta em porta oferecendo a última palavra em artigos para o lar. Eu, que tenho enorme dificuldade em falar não, já adquiri vários produtos desse inusitado comerciante, como dois sapatênis inúteis pela bagatela de dois reais. Mas já saí no lucro também. Por exemplo, a minha primeira aquisição foi uma mesa para computador em ótimo estado. Lembro quando ele me chamou à porta de casa e me perguntou se eu não estaria interessado. Fui com ele ver a tal mesa, meio desconfiado, imaginando que ao chegar lá não encontraria senão uma porcaria em estado deplorável, e qual não foi a minha surpresa quando me deparei com uma bela mesa cor mogno, praticamente nova. Ao apenas relar nela, entretanto, ficou claro que ela desmontaria com um simples sopro. Mas poderia ser consertada. Barganhei. Ele queria dez. Eu regateei e ofereci cinco. Ele meditou uns segundos e fez sua última oferta: seis – um real a mais para o cigarro, já que a pedra custa cinco. Achei justo e fechei negócio. E cá estou eu, escrevendo sobre a minha mesa cor mogno, que com uns preguinhos a mais ficou como nova.

Mas o que eu mais gosto de comprar mesmo do Honório são livros. Ele percebeu meu interesse e, agora, sempre quando acha livros na rua corre até mim para vendê-los. Tornou-se quase um fornecedor particular, um livreiro pessoal. Na maioria das vezes não me traz nada além de livros didáticos sem valor, ou livros referentes a áreas e temas completamente desinteressantes ou inúteis, entre eles, respectivamente, auto-ajuda e física da década de 50. E ele, como um bom vendedor, rapidamente inteirou-se a respeito dos meus interesses: ciências humanas, em geral, e, em particular, sociologia. Quando aparecia aqui com um livro para vender ia logo dizendo: “você que faz socialismo tem que ler este livro”. E, de fato, cheguei a adquirir um belo e conservado exemplar de Parceiros do Rio Bonito, de Antônio Cândido, junto com mais seis outros livros menos importantes por apenas doze reais. Eu ofereci dez. Ele, sabido, percebendo meu indisfarçável interesse, não fez por menos de doze. Bom negociante esse Honório. Teria dado um ótimo vendedor caso não tivesse entrado no mundo das drogas. Mas espere. Não é ele, de fato, um negociante habilidoso? Não é ele, efetivamente, um vendedor? Se você, caro leitor, entabulasse negociação com ele entenderia do que eu estou falando. Por exemplo, quando vai vender um livro, Honório lê o título com a mesma pompa de um intelectual erudito, cita o autor com o mesmo ar grave e solene com que um acadêmico cita um grande nome da sua área de estudo. Não dá para negar que fica-se com a impressão de que ele realmente sabe do que está falando.

Podemos não gostar de reconhecer isso, mas, com drogas ou sem drogas, o nóia da vila desenvolveu suas habilidades. Para ser sincero, já passei por muitos corretores de imóveis, lojistas de roupas, e nunca conheci um vendedor tão habilidoso como ele. Grosso modo, os vendedores não nóias fingem-se amigos íntimos de uma tal maneira que a artificialidade da encenação desagrada e aborrece o potencial comprador. Já o Honório não; é espontâneo, natural. Além disso, ele desempenha outra função social, de fundamental importância, que deve ser sublinhada: reciclador de lixo. O que é lixo para alguns, é mercadoria para outros, e dinheiro para Honório. O que ele faz com esse dinheiro, meros trocados, não interessa: se é comprar comida para uma criança ou se matar de fumar pedra. E não interessa mesmo sabendo que esse dinheiro vai ajudar a sustentar não apenas o vício de Honório mas também o tráfico de drogas. O problema do consumo de drogas e do crime organizado é muito complexo para ser tratado aqui. Digo apenas que não é evitando dar dinheiro a pessoas como Honório que a situação vai mudar. Ademais, quem acha que o burguês não consome drogas do crime organizado é muito burro ou muito inocente. A diferença é que burgueses viciados não enfrentam o estigma que recai sobre viciados pobres.

Não quero, com este texto, erigir em mártir ou modelo o meu vizinho nóia. Creio que, por óbvio, nem precise argumentar aqui que ele é parte de um enorme e complexo problema social para o qual devemos encontrar soluções radicais. Tampouco é preciso lembrar o sofrimento que ele suscitou nas pessoas que o amam. Preferia que, ao invés de nóia, Honório fosse um trabalhador esforçado e responsável. Só que neste mundo nem sempre é possível ser correto e fazer o que todos esperam que a gente faça. Escrevo essa crônica apenas para lembrar que pessoas como Honório são seres humanos como nós, com uma história de sonhos, tristezas, alegrias, e que, por mais fodidas que elas estejam, por maior que seja a cagada que fizeram com suas vidas, nem por isso deixaram de ser humanos. Tendo a acreditar que nada pode extirpar completamente a humanidade de alguém, nem mesmo uma droga como o crack. Honório é exceção, eu sei. Ele sustenta seu vício legalmente com criatividade e espirituosidade. Mas o que a sua história coloca em questão não é a capacidade humana de preservar a todo custo a sua humanidade, e sim o nosso olhar sobre pessoas como Honório, que cometeram erros, que não tiveram oportunidade, que não foram fortes para não se extraviar pelo caminho, e como esse olhar, de indiferença e estigma, ajuda a perpetuar histórias como a do Honório, o nóia da vila.