sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Carta de alforria de um cidadão de saco-cheio

Por meio desta carta, faço saber a todos que estou partindo. Deixo esta vida miserável e aborrecedora para trás com o coração alegre e a consciência aliviada. Chega de escrivaninhas, arquivos, formulários, precatórios, protestos, petições, cartórios, protocolos, autos, despachos, embargos, mandados, processos. Chega de barba feita e cabelo impecavelmente alinhado. Chega de palavras de tratamento obsequiosas. Chega desta maldita gravata, deste sapato petulantemente engraxado, deste terno presunçoso, destas maneiras enfatuadas. Chega de jantares solenes, requintados, onde todos estão ocupados demais em pavonear-se para poderem ser sinceros de fato, blasonando um ar afetado de importância, como se fossem pérolas num mundo de porcos. É patético.

Enfim, chega desta vida vazia, de sorrisos falsos, de condutas simuladas, artificiais, de frases hipócritas. Esta carta é de alforria, mas podia ser de suicídio, porque vou tratar de matar minha antiga vida. Vou viver aquela que sempre sonhei, sem norte, indo aonde meu nariz apontar, com um violão debaixo do braço e um cachorro vira-lata ao meu lado. Nunca quis ser advogado, muito menos juiz. Formei-me em direito por razões exteriores a mim mesmo, aquiescendo às instâncias de meu pai, que era magistrado, tal qual o pai dele fora e assim por diante. À época, disseram-me que eu era ainda muito jovem, que não sabia nada da vida, que eles sabiam o que é melhor para mim. Agora, passados todos esses anos, não saberia dizer porque, uma vez satisfeito essa injunção, continuei pelo mesmo caminho, sem olhar para trás. Como foi possível esquecer-me de todos os sonhos de juventude? 

Não sei. Sei apenas que, num belo dia, acordei. Por acaso, enquanto vasculhava algumas caixas guardadas, ou melhor, esquecidas no depósito, deparei-me com um velho caderno dos tempos da faculdade, no qual escrevia crônicas e poesias, além de um diário. Era aí, no mundo das palavras e do papel, onde eu podia ser quem eu sou de verdade. Ler aquelas linhas preciosas foi como ter uma epifania. Me senti atordoado, como se tivesse levado um saco na cara. De repente, vi-me num emprego de merda, vivendo uma vida familiar de fachada, e neste dia compreendi que eu sou infeliz, que eu me tornei o que mais desprezava. Portanto, compreende-se que eu não possa mais continuar deste jeito.

Carla, é preciso que você saiba, agora que eu compreende tudo, que me casei com você por conveniência. Sempre achei que você era a mulher da minha vida, que havíamos nascido um para o outro, mas estava enganado. Casei-me contigo porque você tem sobrenome de alto preço, porque você advém de uma família tradicional, poderosa e influente sobre a vida política da região. Além disso, porque você é gostosa, formosa, o tipo ideal de mulher padrão. Você me vestia como uma roupa. Diziam que formávamos um casal lindo – estavam certos. Lindos por fora, podres por dentro. Sempre achei que os problemas conjugais que enfrentávamos eram normais, coisas pelas quais passa todo casal, e conosco não seria diferente. Enfim compreendi que existia algo além disso. Nunca compartilhamos nada exceto o apego à riqueza, ao prestígio, ao conforto e facilidades de quem vive na cobertura da hierarquia social. Mas não se preocupe. Deixo-lhe tudo o que você realmente ama: casa, apartamento, carros, ações. Para onde irei não preciso de nada disso.

Mãe, peço-lhe que, se possível, compreenda os motivos de seu filho, e se não for possível que ao menos o perdoe. Sei que, no fundo, a minha felicidade é o que mais lhe importa. Pai, sei que jamais ser-lhe-á possível sequer sentir o que eu sinto; não obstante, o que eu faço hoje, o faço por nós dois. Compraz-me cuidar que, se tivesse tido você esta oportunidade, agarrá-la-ia com o mesmo delírio que eu a agarro neste momento. Meus filhos queridos, no meio de toda essa desventura frustrada que é a minha vida, vocês foram a única coisa boa que me aconteceu. Por vocês eu faria tudo de novo; eu seria infeliz sem pesar apenas pelo fato de que essa infelicidade me deu vocês. Sem vocês nada disso teria valido a pena. Agora que já estão crescidos, deixo-os aos cuidados do mundo. Sei que me farão orgulhoso. Quanto ao resto da família, aproveito a oportunidade para manda-los à merda. Não me procurem. Por fim, aos funcionários do escritório peço desculpas por deixa-los desempregados, porém não sem antes agradecê-los na medida do possível: todos vocês terão uma agradável surpresa no próximo pagamento. 

Bom, creio que é isto. Hora de dizer adeus. Embora odiando a minha vida, amo as pessoas que fizeram parte dela. Entretanto, agora uma nova vida me espera. Com novas pessoas, novas histórias, novos amores, novas amizades. Como dizem por aí, o mundo é a minha concha. E dá próxima vez que cruzarem com um sujeito esfarrapado, aparentando fome embora de sorriso aberto e gratuito no rosto, tocando violão em troca de trocados, parem e deem-lhe um pouco de atenção, porque pode ser seu filho, seu pai, seu ex-marido.

Nenhum comentário: