sexta-feira, 13 de março de 2009

A história de Jorge

- Caralho, mano! Os verme tão subindo!


A movimentação dos soldados-bandidos sobre a laje das toscas construções fez-se frenética nem bem os rojões de treze tiros espocaram pelo ar. Cada qual, de sobreaviso pelas carreiras de cocaína aspiradas ao longo de toda a noite passada, assumia apressadamente seu posto no campo de batalha ante o alerta geral dado pelos fogueteiros. Soldados e vapores formavam a linha de frente do front aos brados de “atividade, atividade porra!”, ditados pelo gerente da boca. O som metálico das armas sendo engatilhadas, misturado às batidas do rap compunha uma trilha sonora minimalista, sucessora daquelas dos antigos filmes de faroeste. A tensão transpirava pelos poros aguerridos dos esfarrapados soldados e espraiava pelo ar, indo diluir-se no clima de pavor que instantaneamente tomava de assalto a favela. Ouviam-se as janelas e portas sendo fechadas. Aqueles desapercebidos que tiveram a infelicidade de serem pegos de sobressalto, rapidamente se escafediam pelas vielas ou buscavam refúgio nalguma das poucas portas ainda não cerradas pelo medo.


Esse estado de guerra fria perene, que para alguns pode parecer fantasia ou mesmo um eco à distância, faz parte do cotidiano daqueles pobres homens e mulheres condenados à existência miserável dos guetos modernos. Contudo, antes de fazê-los fraquejar, forjou ânimo de aço no bojo dos seus corações. Acostumados como estão a esses constantes dissabores, imprimidos diariamente à ferro e fogo em seus semblantes à guisa de um ferrete, resistem estoicamente às agruras daquela vida como você e eu jamais seriamos capazes de suportar. Com exceção das mães – as quais são muitas –, o clima de pavor logo dá lugar ao de indiferença e trivialidade em face de mais um capítulo dessa novela, a qual a Rede Globo não se atreve a encenar.


Num piscar de olhos, tudo começava e, no piscar seguinte, acabava-se. Era como um lapso na malha do tempo-espaço cotidiano, cuja gravidade que emanava da densidade daquela matéria social paralisava o tempo de tal maneira que a sensação era de infinidade. Mas, segundo nosso sistema de medição de tempo, era tudo muito rápido. A polícia dificilmente se arriscava para dentro do coração da favela, restringindo-se amiúde ao entorno. Ora, aqueles meninos-soldados são bem armados, irascíveis, com ódio na veia e prontos a atirar. Com efeito, quem em sã consciência, com filho e mulher, seria suficientemente insano para invadir aquela ratoeira e trocar tiros à queima-roupa com eles? Haveria de ser muito idealista ou igualmente raivoso. Não, não. É melhor disparar à distância, ainda que os riscos inerentes sejam demasiados onerosos aos civis. Toda a favela é transformada, assim, em uma enorme trincheira urbana, na qual cada lado combatente descarrega sua munição através da “terra de ninguém” – como era chamada a extensão de terra balizada por duas trincheiras na Primeira Guerra Mundial. A diferença é que muitas histórias de vida moram ali.


Da laje do seu barraco, o pequeno Jorge observava a tudo com um arrebatamento íntimo que misturava emoção e ansiedade. Olhos fixados na movimentação constante daquele jogo que opunha homens de fardas contra moleques de andrajos, ele perscrutava e esquadrinhava cada canto desse cenário bélico apinhado de casebres, civis e cachorros vira-latas, aonde se desenrolava a ação. Aquilo era verdadeiramente muito mais empolgante do que os filmes – que ele sabia falsos – de guerra exibidos domingo à tarde na televisão. Jorge tinha esse espírito aguerrido que certos humanos carregam impresso desde o nascimento na personalidade. Alguns acabam consubstanciando-o em 9mm de ferro cintado. Ademais, esse espírito é sempre mais vivo na tenra idade, ainda não dilapidado pelo superego social e ávido por aventuras homéricas. Afinal, quem nunca se divertiu na infância brincando até o esgotamento de polícia e ladrão? Era emocionante traçar planos de fuga engenhosos, prender vagabundos que perturbavam a ordem ou fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Eu, de minha parte, preferi sempre o lado criminal. Contudo, depois de crescermos, ou a brincadeira fica séria ou perdemos a graça e o entusiasmo pela coisa.


O pequeno Jorge, protegido sempre por um santo forte como fora, já dava sinais de que a brincadeira logo se tornaria séria, talvez ainda cedo demais. Não completara nem a casa decimal e já poderia ser flagrado fazendo pequenos “bicos” para a boca vizinha à sua casa, o chamado “avião”. Em troca de alguns trocados, que para ele pareciam uma fortuna, Jorge buscava refrigerante, entregava recados, buscava “peças” entocadas. Mas o melhor pagamento mesmo era ganhar o respeito daqueles bravos homens, cujo calibre faz a lei, e cuja vida desafia diariamente a ideologia apregoada pelos mantenedores do status quo, evidenciando a lógica que a sociedade teima em velar. Ele recebia cafunés na cabeça, agrados de todo tipo, ganhava doces, lanches, ensinavam-no a atirar em latinhas, davam-lhe dinheiro para levar à mãe, e ai de alguém que tirasse onda com a sua cara na escola. Os traficantes da boca apelidaram-no de “psico”, dado a intrepidez com que desempenhava as funções e a vontade indelével de fazer carreira no mundo do crime. Jorge era um guerreiro, e a vida para ele só tinha sentido se você a tomasse pelas mãos e a obrigasse a dar-lhe o que pedia; se necessário for, na ponta de um revólver. Fora assim que aprendera, como um bicho-do-mato ataca quando encurralado contra o sopé de uma árvore. A vida é selva, e ele prometia para si mesmo tornar-se leão. Evidente, portanto, que seu espírito dava mostras promissoras de outro líder paralelo cultivado desde cedo no ventre das inoportunidades concedidas como esmolas àquele povo. E isso é inadmissível para a sociedade auto-proclamada do “bem”. Agora, o mau, ah sim, se pudessem, queriam mais era escaldar o coro de delinqüentes primaveris como Jorge. E, de fato, era isso mesmo que faziam. O rancor de Jorge ainda era diminuto perto de tudo o que a sociedade ainda tinha para lhe ensinar e fazer medrar em seu coração. Seu tempo era pouco, porém faria bom proveito dele. Ele seria o escarro da hipocrisia voltando em dobro, triplo, à cara daqueles porcos.

sábado, 7 de março de 2009

A história de dona Salete

E foi por não ter mais para aonde ir que dona Salete decidiu, novamente, partir. De mais a mais, haveria outra solução? Pensou ela que não e, acostumada como estava à vida de retirante caçadora de parcas oportunidades, arriscou-se a seguir as recomendações do pessoal diretor da empresa – agora “sua” ex-empresa. Pois então, haveria de se tornar uma pequena proprietária, associada de uma cooperativa. Pelo menos, foi isso que haviam lhe dito.


Antes disso, ao longo de quase uma década ela havia destinado todas as suas forças e sonhos àquele emprego. Mãos extremamente hábeis para a costura, Salete não demorou a ocupar uma vaga em uma das centenas de máquinas overlock localizadas no setor de confecção de uma grande multinacional têxtil na grande São Paulo, após dias penosos no pau-de-arara. Sua mãe até tentara dissuadi-la daquela idéia maluca, onde tantos foram e jamais voltaram, mas nem o mais sagrado dos conselhos pôde declinar a sua obstinação. E, para fazermos justiça, foi devido a uma razoável dose de sorte que a migrante consegui se estabelecer relativamente bem no famigerado Sul. Que fique claro, relativamente bem para uma retirante fugida da fome e da seca do sertão nordestino, sequiosa por fazer um destino melhor do que aquele que sua mãe lhe deixara de herança. Ora, ela não conquistara grande êxito material, mas tinha um barraquinho próprio em um extremo periférico da maior cidade brasileira, de modo que isso não poderia, relativamente, ser considerado como uma vitória? Faltava-lhe um sem-número de itens dos mais variados bens de consumo que a televisão (isso ela havia conseguido comprar) lhe oferecia todos os dias, porém, na medida do possível, sentia-se feliz com o pouco que seu suor pôde adquirir.


E agora lá estava ela a ouvir com pesar o discurso retórico do funcionário-chefe, encarregado de passar aos funcionários não tão graduados como ele os resultados da reestruturação do setor produtivo da empresa. Os tempos eram difíceis, dizia ele, e por isso os executivos tiveram que tomar decisões igualmente difíceis. Não faziam aquilo senão com uma tristeza solene, contudo a situação urgia por tais medidas drásticas e elas seriam levadas a efeito pelo bem geral. Segundo o funcionário-chefe, que naquele momento fazia o papel de porta-voz da empresa ou de capitão-do-mato, como queira, a empresa não era mais capaz de manter o seu setor produtivo, o qual havia se tornado demasiado oneroso e, portanto, deveria ser terceirizado como parte da meta de corte de custos. Essa era a tendência geral segundo a qual centenas de empresas vinham procedendo a partir do último quartel do século passado. Além do mais, as ordens vinham de cima, não sendo, portanto, negligenciáveis. Isso porque, na verdade, a empresa em que dona Salete laborou com tanto afinco e fé não era, de fato, uma multinacional, mas sim uma das muitas filiais subcontratadas de uma das seletas corporações transnacionais que oligopolizam o setor. Ela costurava o cós e a barra das calças da afamada marca – as quais ela própria não tinha dinheiro para comprar – que, por sua vez, seriam vendidas mundialmente. Desse modo, quem efetivamente produzia não era a marca propriamente dita, mas empresas sem-nome espalhadas pelo Terceiro Mundo todo, como a de dona Salete. A lógica disso, entretanto, escapava-lhe da compreensão. Como meio de aumentar seu poder sobre o mercado interno, ao mesmo tempo em que barateava o custo produtivo das mercadorias voltadas para a exportação, os CEOs da empresa-mãe decidiram inverter parte do fluxo de investimento externo direto naquela empresa brasileira, ao invés de apenas subcontratá-la. Noutras palavras, a multinacional incorporou a empresa menor que empregava Salete, comprou-a. A estratégia de aumentar a acumulação baseando-se na exploração do trabalho não parava por aí, naturalmente.


É sabido que, nos setores produtivos com menos desenvolvimento tecnológico e, consequentemente, com utilização mais intensiva da mão-de-obra, como é o caso do setor de confecção, as estratégias de aumento do lucro baseiam-se na exploração sem limites do trabalho. E para isso, nada melhor do que a riqueza humana que irrompe do solo de países emergentes, com abundância de mão-de-obra barata, alguma proteção social pública que mitigue ligeiramente a pobreza, e com leis trabalhistas flexíveis e/ou facilmente burláveis. Eis aí a cobiça que nosso imenso território tupiniquim desperta. Claro que não estamos sozinhos, evidentemente, China, Índia, México, e outros desafortunados nos acompanham. Contudo, aqui o retorno é promissor demais, com garantias e risco zero. Pergunte ao FMI, ele irá concordar com essa afirmação. Dirá que somos ótimos devedores porque pagamos em dia e sem protestar acerca dos juros e spreads; que os investidores não correm riscos em face do nosso governo, visceralmente avesso à revoluções e sempre complacente com as demandas do capital internacional – especialmente o financeiro; e que os macacos brasileiros são vigorosos trabalhadores, satisfazem-se com pouco e, o melhor de tudo, são reacionários inatos. Pode perguntar, o risco do Brasil é nulo!


Naquele dia, ao tomar o primeiro ônibus urbano que a levaria novamente para a favela, o cortiço moderno aonde a grande São Paulo varre para debaixo do tapete todas as noites aqueles miseráveis que a sociedade civil insiste em ver só ao longo do dia na forma de trabalhadores, os pensamentos de dona Salete sobre o acontecido eram uma mixórdia desordenada e ininteligível. Suas colegas de trabalho ficaram extasiadas com a possibilidade de ascenderem da posição de empregadas de pouca monta para a de proprietárias – ou co-proprietárias – do próprio negócio: a cooperativa. Mas Salete, cuja vida tinha sido ensinada pela mais arrematada carência e como lição aprendera a subserviência, cultivava certos receios. Afinal, se essa mudança haveria de ser boa, por que o sindicato advertia sobre a depreciação dos direitos trabalhistas, que a cooperativa acabaria por menoscabar? Os diretores da empresa afirmavam que o salário maior que elas receberiam na cooperativa compensaria a falta dos benefícios sociais como o décimo terceiro salário e o fundo de garantia, e tudo o que elas teriam que fazer era se esforçarem ao máximo para produzirem bastante, ganhando cada qual proporcionalmente em razão do montante produzido. Ademais, elas seriam donas da sua própria empresa! Mas toda a incerteza que lhe fustigava a mente deixava dona Salete preocupada e, somando-se a isso os problemas familiares com um dos dois filhos e com o ex-marido, seu coração seguia apertado pelas ruas esburacadas da grande São Paulo.