domingo, 21 de setembro de 2008

Momento de descrença

Fixo olhos temerosos ameaçara
Praguejar aos vômitos. Em vão.
Um longo tapa na cara,
Uma pausa na respiração.

Foge. Projeta-se no horizonte.
Alhures um rosto esquálido sorri.
Braços não afagam, maltratam.
Beijos não acalentam, violentam.
Puro são os tempos imemoriais,
Que de nós fogem em passos ligeiros,
Pois violentados seremos ainda mais,
Acostumados a infindáveis desesperos.

Lamento, mas faria tudo outra vez

Não me lamento
Pelos amores perdidos,
Pelas experiências desprezadas
Que agora são cicatrizes.


Pelas lições que não tirei da vida,
Pelos braços que não abracei,
Pelas merdas que não disse,
Pelos pensamentos mudos e engavetados.


Mas sim,
Por perder amores,
Por desprezar experiências
Que ainda não cicatrizaram.


Por não tirar nada da vida,
Por não abraçar mais braços,
Porque deveria ter dito merda,
Porque emudeci e engavetei tantos pensamentos...


Quem sabe uma segunda chance ainda espreita na esquina do mundo trazendo-me a redenção. Caso ela apareça por aqui queira, por favor, anotar-me o recado, porque, de novo, estou ausente.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Nada de novo no front


Pense em uma família. Decerto a clássica pintura que nos vêem à cabeça é aquela tão tradicional quanto inexpressiva, insossa, enjoativa: mamãe, papai, filhinho(a).

Logo pela manhã mamãe acorda o papai com um beijo mecânico e um sacolejo abnegado. Ele abre os olhos. Deseja morrer. Ela idem. Numa ânsia de desencanto ao olhar a face do marido que deixa transparecer sua desestima por ela, sente vontade de vomitar o café extremamente forte, ingerido minutos antes, no rosto dele. O sentimento de agressão perpassa os dois corações quando, por um breve e acidental resvalo, seus olhares se cruzam. Portanto não se olham. E isso é quase que tacitamente acordado entre eles, pode-se dizer.

Na verdade, esse pequeno ínterim nada tem de anormal. De fato, marido e mulher, ao enjeitarem-se mutuamente, nada mais fazem além de consumar seu cotidiano de casal. É mais outro dia normal.

- Levanta, bem (traste)!
- Porra, mas que horas são mulher? Já lhe disse para não me acordar antes da merda das sete horas!
- São sete horas...

“Essa porcaria de despertador deve ter sido feito numa freqüência sonora audível apenas pelos ouvidos femininos”.

Tal foi o pensamento da mulher, mesmo antes de abrir os olhos. Indagava-se todos os dias acerca dessa questão mesmo sem nunca chegar a uma resposta concreta. Era inútil: a problemática do “rádio-relógio despertador que só podia ser ouvido pelas mulheres” era impassível de uma resolução e ponto final. De fato esta era a única tese que lhe ocorria, uma vez que ela e o marido dividiam o mesmo quarto e a mesma cama, de modo que o despertador podia evidentemente ser ouvido pelos dois quando apitava pela manhã e, a despeito disso, apenas ela levantava. É verdade que esse maldito aparelho estava em cima do criado-mudo situado do seu lado da cama, entretanto por mera força do hábito, já que isso facilitava para ela desligá-lo. Com efeito, o marido certamente ouvia a azáfama fragorosa com que o despertador tentava lhe botar de pé. Isso para ele era tão odioso, quanto se imaginar fazendo sexo com aquela mulher prostrada ao seu lado logo pela manhã. Por isso, preferia manter os olhos cerrados e tentar dormir alguns minutos a mais. O ato sexual vinha cinicamente à mente de ambos apenas como subproduto de resquícios hormonais que certas feitas lhe ocorriam. E isto não passava de uma ou duas vezes por semana no máximo.

“Não, não. Esse desgraçado também ouve o barulho, mas ignora-o” pensou a mulher, finalmente concluindo sua tese, “aproveita para dormir um pouco mais enquanto preparo seu café, ajeito-lhe a roupa do trabalho de maneira a ficar fácil à vista e pego seu jornal na caixa de correio”.

Tal era a perícia com que desempenhava a função, ela desligou a aparelho sem olhar diretamente para ele, apenas usando levemente o tato. Levantou-se, calçou as sandálias e desceu para fazer as obrigações que o destino lhe reservara.

“Grande merda” pensou.

“Merda de emprego, merda de mulher, merda de filho, e merda de cachorro que ficou latindo a noite toda e não me deixou pregar os olhos”.

Tal foi o primeiro pensamento que lhe passou pela cabeça que decidiu não pensar em mais nada até chegar ao trabalho, isso porque poderia lhe ocorrer coisas piores e, como ultimamente dava-se a se entregar impetuosamente aos primeiros desvarios de cólera, achava melhor furtar-se a maiores celeumas. Pôs a roupa numa fleuma típica das manhãs de segundas-feiras. Com os pensamentos ainda pachorrentos e se reorganizando em sua mente, abalançou-se para o café-da-manhã.

Enfim, estavam todos à mesa do café. Ah! sim, havia o menino, filho do casal. Mas este não convém se deter por muito tempo, porquanto ainda era novo demais para entender as angústias de um casal em crise. Sentia lá no fundo do seu coraçãozinho apertado que algo estava errado, e que, em última instância, era ele o culpado. De certa forma, mesmo sem ter a real concepção da situação, vislumbrava o fardo que carregava por ser o único elo que mantinha os pais sobre o mesmo teto, atados a uma coleira curta e condenados a cheirarem seus respectivos ânus eternamente. O pequeno tomaria a exata consciência disso quando se tornasse grande o bastante para perceber efetivamente que seus pais aturaram-se mutuamente, todo aquele tempo, unicamente por sua causa. E isso era um fardo demasiado dolorido para um garoto de a sua idade carregar. Por hora, tentava simplesmente não pensar nisso.

TO BE CONTINUED...

Uma visita qualquer


Palmas. Aproximo-me do portão. Uma mulher de semblante surrado, portando um bebê à tira colo, pede por uns trocados para comprar leite. Respondo-lhe que dinheiro não tenho, mas que poderia lhe dar um litro de leite. Ela argumenta que precisa de dinheiro não para comprar leite natural, mas sim leite em pó – que, suponho eu, rende mais.

Fico em silêncio por alguns instantes. Olho aqueles dois seres abandonados à própria sorte e sinto um forte pesar. A mulher me olha em resposta como se estivesse muda, procurando algo a dizer, “uma ajuda por favor, qualquer uma”, talvez. A criança de colo, nascida no seio da miséria, já parece saber dos meios consuetudinários utilizados para induzir condolência naqueles além propriedade e me olha piedosamente.

“Espere, por favor”.

Entro em casa, caço algumas moedas espalhadas que não somam nem um real, pego um litro de leite e entrego à moça. Ela agradece com um “obrigado” esmaecido, quase inaudível, de quem não tem forças ou de quem não tem mais fé para continuar tamanha vida sofrida. Logo depois se afasta.

Fico inerte, junto ao portão, observando seus passos curtos – de quem não tem para onde ir mesmo – pela calçada em direção à residência subseqüente. Passos cabisbaixos. As pessoas que passam ao lado também estão cabisbaixas. Por medo ou vergonha, não sei ao certo. Ou ainda por desilusão talvez. O certo é que, ao chegar no portão contíguo ao meu, a mulher, na tentativa de livrar uma das mãos do peso da menina, coloca-a no chão, de pé, apoiada nas grades do portão. A criança num gesto inesperado – pelo menos para mim – largou a grade e pôs-se a bater palma.

Fiquei estarrecido. De fato, o meio perpetua e imprime, através da vivência, maneiras de pensar e de agir na consciência de uma pessoa. Uma criança de colo que mal consegue para em pé, consegue largar o objeto no qual se apóia para, instintivamente, acompanhar as ações da mãe. Hoje bater palmas, amanhã – quando aprender a falar – pedir comida. Como um animal que ensina seu filhote a sobreviver, a menina toma as ações da mãe como aprendizado, percebendo que aquele é o meio pelo qual, primeiro sua mãe e depois ela própria, sobreviverão. Essa criança jamais poderia entender o amplo significado social que reside em seu gesto. A mãe sim, e talvez por isso, ela impede que a menina continue a bater palmas.

Meu telefone nunca toca

Meu telefone que nunca toca,
E hoje outra vez não tocará.
Espero... esperançoso de que lembrarão,
Mas não, não hão de lembrar.

“Feliz aniversário” alguém me disse,
Mas que maluquice! Será isso mesmo q’eu ouviste?
Talvez sejam apenas lembranças de minha meninice...

E esse telefone que não toca, meu Deus?
E porque haveria se era isso que você queria!

Eu tentei. Sinceramente, juro que tentei,
Mas, nesse mundo, ninguém nunca quis me ver.
De todos que convivi jamais algum rejeitei,
E assim mesmo, de verdade, quem pude ter?

Se alguém puder me ouvir, me toque!
Qualquer palavra pode ser que me comove.
Por favor, me recorde, me recorde...

E esse telefone que não toca?
... quer deixar recado?
Não, eu espero...

Na sala, um sofá, a TV que nunca liga, o telefone que nunca toca e o silêncio perene. Para além da janela, lá fora, existe barulho, vida, pessoas. Orgia de palavras buzinadas. Um completo desperdício. Não entendem a sorte que os contempla com toda a ordem de sons humanos e, por essa razão, não sabem ouvir. Tolos que não dão o devido valor. São como ilhas cheias de vida que não se comunicam entre si, cada qual com a sua beleza e verdade transcendentais. Aquele alvoroço todo lá fora e aqui o silêncio mortal...

A noite estende-se rumorosa, mas não para mim. Parece tudo tão quieto que até posso ouvir as batucadas solitárias martelando meu peito. Eis que de repente o inesperado acontece: o telefone toca!

Será que dessa vez eu atendo?
Acho melhor não...