domingo, 23 de fevereiro de 2014

Entre amor real e irreal

Me disseram que o amor não tem linhas
Ele é tortuoso por natureza
Acho que isso quer dizer que, para o amor
Não há regras, não há ordem
Não é factível um amor organizado
Reto, burocrático, que saiba exatamente o que está fazendo
Ele vem sempre acompanhado de tantos sentimentos
Circunstâncias e tendências contraditórias
Não existe em estado puro
Mas longe de ser irreal
O amor verdadeiro é surreal
Será que se ele fosse real sua beleza se acabaria?
Será que deveríamos colocar o amor numa redoma de vidro
E conservá-lo longe das intempéries e dos nossos erros?
Simplesmente não dá
Ora, não viver o amor por medo de macula-lo já é vivê-lo
Já é fazer um escolha
Possivelmente fonte de arrependimento futuro
O legal do amor é sua comicidade comovente
Ou sua condição trágica
E a gente enche ele de palavras
Afobadas, inconsequentes, ruidosas
Quando na verdade só queríamos ficar calados
Ouvindo o bater de nossos corações
Isso porque somos confusos
E temos medos
E precisamos justificar
E racionalizar tudo
A nós mesmos
Mesmo aquilo que não tem razão nem nunca terá
E por mais que não o entendamos
Às vezes nos basta ouvir aquela voz que lá de dentro grita
Eu amo!

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Sei lá eu

Tá dormindo, caralho?
Acorda, porra!
Onde você vê melhora?
Evolução, progresso?
Cadê essa merda?
A cada ano só piora
A gente caga, senta em cima
E só porque escorrega
Acha que avança
Todo cagado
Este é o mundo que criamos
Cada vez mais lotado
Poluído, violento
Frenético, invivível
Sim, a singularidade catastrófica
Da situação merece um neologismo
Não tem reforma que dê jeito
Nessa estrutura viciada
Pouco, muito pouco
Pode ou merece ser aproveitado
Há que botar tudo abaixo
Consumir com fogo
Começar de novo
Se isso lhe soa como fatalismo
Pra mim soa como um tapa
Na cara do seu pseudo-realismo
Continua aí com o teu sonho
De um capitalismo humanizado
De um socialismo milagroso
Precisaremos ser mais criativos do que isso
Ao invés de escolher um dos lados
Eu escolho o avesso
Ao invés de tomar partido
Eu dou de ombros
O caminho é outro
Vai noutro sentido
Que ninguém sabe qual é
É preciso perder-se para acha-lo
Abrir mão de velhas certas
E a mente para novas ideias
Ousadas, inimagináveis
Sei lá, véio
Tenho certeza de nada, não
Nem das minhas próprias incertezas
Mas às vezes eu acho que tá tudo fodido

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Correspondência

Antes do teu colo
Eu quero o teu peito
Antes do teu afago
Eu quero o teu sexo
É do teu coração
E não de comprazimento
Que eu preciso
Não é compaixão
Que eu procuro
É paixão, entrega
Amor e loucura
Em resumo, pequena
Se for pra me deixar só
Não me venha com a tua dó

Dor

A dor pode servir de aviso
Ante a ameaça iminente
Põe-nos de sobreaviso
Cuidado, perigo à frente!

Mas a dor é mais que isso
Mais do que reação física
Instintiva, desencadeada
Para proteger o organismo

Emoções, sonhos, vontades
Têm o mesmo poder físico
Dum açoite, látego ou chicote
O estrago, contudo, é no espírito

Nem sempre a dor é mal sinal
Ora, sentir dor é prerrogativa dos vivos
Os mortos nada mais têm a arrepender
Nem a corrigir, nem a correr atrás

Certas lembranças pungem
Se doem, não se assuste
Nem se desespere também
Só dói o que ainda vive
E só o que vive ainda tem
Uma segunda chance

O vento

O vento leve
Leva a palavra
Num sopro

Carrega a prece
Até o ouvido
Da santa

Espalha o silêncio
Dissonante
Suspenso no ar

Executa, ao longe
No canto do pássaro
A sinfonia de Bach

Acaricia da árvore
Os ramos

Dissolve, paciente
O barulho

Faz do grito
Murmúrio

Da promessa
Sussurro

Sem pressa
Ao sabor
Do acaso

Vento-oração
Vento-canção

Faz ao mundo
O que faz a mão
Sobre o corpo

Embala
Afaga
Acarinha

Às vezes
Acossa
castiga

E o essencial:
Muda as coisas de lugar
Leva, transforma

Na calmaria
Ou na borrasca
Sejamos vento

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Sina

Quanto a mim
Falta tato, falta jeito
Além de menino, bobo
Não têm braços
Tampouco beijos
Que cure esse desejo
De ser amado
Que aquiete esse desassossego
Que trago desde o berço
No peito
Um coração solitário
Que bate calado
Amuado
Porque não encontra remédio
Pra este vazio
Que aos pouquinhos
Há de me matar
De tanta falta

Dar-se

Não te assustes, morena
Com este meu sorriso farto
Este meu jeito de moleque levado
Nada em mim é segredo
Sou um livro aberto
Nem capa eu tenho
Não faço nenhum mistério
Dos meus sentimentos
Dispenso qualquer cerimônia
Nada em mim é fingimento
Digo-lhe exatamente o que penso
Este lado externo que vês
É igual o interno que não vês
Se rio enquanto te beijo
Se choro depois d'um adeus
É porque é isso
Exatamente isso o que eu sinto
Sei que às vezes corro perigo
Que ando por aí desarmado
Mostrando os dentes a possíveis inimigos
Mas só sei encarar assim o mundo
Sem desconfiança, sem maldade
Mas não te preocupes
Que meu santo é forte
Nem, como lhe disse, te assustes
Com este meu apego
Este meu jeito de cão sem dono
Sou daqueles que se apaixona fácil
Carente e volúvel
Porém sincero
Por isso não te cuides responsável
Pelo que eu sinto
Porque meu coração não tem porto
Ele navega sem rumo
E vive a me enganar

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Presente

As coisas mais bonitas para se dar
São aquelas que ninguém pode ter
Por isso, lhe dou a lua de presente
O céu, e até a última concha do mar
E, claro, o meu coração, todo ele

Humanos

Humanos
Inúmeros
Minúsculos
Atarefados
Apressados
Insatisfeitos
Infatigáveis
Ordenados
Coordenados
Cavando
Extraindo
Modificando
Construindo
Manipulando
Parasitando
Proliferando
Comendo
Cagando
Fodendo
Trepando
Ninguém há
Acima
Ou abaixo
Do céu
Que pode
Pará-los
Quiçá
Nem eles
Próprios

Confusão

Meu coração é um novelo
Todo embaraçado
Tem milhares de fios
Muitos começos
Mas nenhum fim
Todo dia eu tento
Só que nunca encontro
O fio da meada
E quanto mais eu mexo
Mais eu me enredo
Mais eu me perco
Neste labirinto
Que se chama
Sentimento

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Para nada entender

O mundo é vasto
A vida um mistério
As pessoas universos
E eu, pequenino, minúsculo
No meio disso tudo
Nada entendo
Só observo
Mas de confuso em confuso
Alguma coisa eu aprendo

Do lado de dentro

Só parece que eu tô longe
Na verdade tô bem perto
Bem do lado de dentro
Quando quiser me encontrar
Me procura lá no fundo
Bem lá no fundo do peito

Esperança

Neste agora
Sou todo feito de sonhos
A esperança não disse nada
Foi logo abrindo a porta
Puxou uma cadeira e sentou-se pro almoço
Disse que ficava pra janta
A desilusão e o pessimismo
Eu deixei lá fora
De castigo
Não tenho nada com isso, ora
A realidade que cuide de seus filhos
Na minha casa
Só entra amor e carinho
Fica esperança
Fica e faça filhos comigo
Faz da minha morada
A tua
Ainda é tempo
De sermos felizes

Primeiro amor

Se lembra quando a gente
Chegou um dia a acreditar
Que tudo era pra sempre
Sem saber que o pra sempre
Sempre acaba?

Eu te levava de bike à escola
Transávamos bêbados na rua
Na cama da sua mãe
Ou íamos de taxi ao motel
Não tínhamos um pingo de vergonha

Dois sem-vergonhas, é isso que éramos
Mas não pelas razões que o leitor possa estar pensando
Éramos sem-vergonhas porque não tínhamos vergonha de amar
Nem de ser feliz
Mas, mais importante, não tínhamos vergonha de sermos bobos

Ríamos dos quadros na galeria de arte
E, sobretudo, do ar de bobo das pessoas
Falávamos alto no cinema
Brincávamos de guerra de comida na praça de alimentação do shopping
Pedíamos sorvetes diferentes para repartir os sabores
Eu dava tapa na sua bunda no meio de todo mundo
Você detestava, vinha me batendo
E eu saía correndo, dando risada
Te levava de cavalinho
Dava colo no banco da praça

Tudo era diversão
Tudo era brincadeira
Impressão minha ou o tempo encurtou depois daquela época?
Tínhamos tempo para qualquer bobagem
Mas se viessem com papo sério
Bá! Pra isso não tínhamos tempo
Se bem que pensávamos em casamento
E filhos, uma penca deles

Ficávamos horas e horas contando estrelas na madrugada
Deitados no gramado do lago
Eu estava sempre cismando planos mirabolantes para lhe fazer uma surpresa
Desde fazer-lhe geleia de jabuticaba da jabuticabeira de casa
Até escrever uma poesia na carteira em que você se sentava na faculdade
Ou pedir para tocar a nossa música na rádio
Não passava em frente a um jardim sem pensar em como roubar uma flor pra ti
Por você eu até limpava a banheira da república
E enfeitava-a de pétalas, velas, incenso e sais de banho

Por que todo amor não pode ser assim?
Por que com o tempo a graça se perde e a vontade também?
A verdade é que não existe primeiro amor
Todo amor verdadeiro
É como se fosse o primeiro
É único, e é recomeço

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Estupro

A primeira vez que aconteceu
Eu tinha 10 anos de idade
Meu pai me surpreendeu
Brincando com a minha “perseguida”
Que era como minha mãe chamava a vagina
Só depois, adulta, foi atinar para o significado
Meu pai veio até mim, cara de bravo
Como quem vai me bater
Eu tinha medo dele, desde que me entendo por gente
Disse-me que eu estava fazendo algo muito feio
E que ia me dar uma lição por isso
Eu era uma criança, estava me conhecendo
Começava a sentir coisas lá embaixo que não entendia
Quando andava de bicicleta sentia cosquinhas gostosas
Tinha curiosidade, mas mal sabia que tudo isso acabaria ali, naquela tarde
Aos 10 anos de idade
Ele terminou de tirar a minha roupa
Abaixou as suas calças, tirou o pau pra fora e me penetrou
Sentia aquele corpo grande e pesado
Cheirando a álcool e cigarro
Pressionando sobre mim
Invadindo um território inexplorado
Primeiro, a dor, inexprimível dor, o sangue
Depois, a culpa, o nojo, a vergonha
O medo de olhar ou tocar novamente a minha vagina
A sensação de que a boceta é uma coisa ruim
E de que de alguma forma eu era culpada
A raiva que sentia
Não conseguia nem me olhar no espelho
Depois daquele dia, ao invés de desabrochar
Fechei-me sobre mim mesma
Minha infância acabou naquele momento
Mas também não me tornei adulta
Fiquei numa espécie de limbo
Em que me encontro até hoje
Conforme a o tempo passa
A ferida fecha, vira cicatriz
A vida segue, você casa, tem filhos
Mas sabe que existe um vazio bem lá no fundo do peito
Uma dor pungente, muda, que corrói pelas beiradas
Você a sufoca, mas ela quer gritar a todo custo
Você a esquece, e de repente ela sai da escuridão e te ataca
Nunca tive um orgasmo sequer com um homem
Nem com o meu marido, nem com nenhum outro
Até hoje sinto ansiedade e medo na hora do sexo
O jeito que um homem me olha na rua pode ser suficiente para me causar um ataque de pânico
Dedico esse relato inventado, mas absolutamente verossímil
A todas as mulheres que já sofreram, sofrem ou sofrerão violência sexual
Ou de qualquer outro tipo, pelo simples fato de serem mulheres
Mulheres que sofrem caladas, desde ainda crianças
Crianças que ainda nem sabem o significado das palavras violência, abuso, estupro
E terão que conviver com suas consequências traumáticas a vida toda
Casos como o meu não são exceção, senão a regra, a mais terrível das regras
Somos prisioneiras em nossas próximas casas
Vitimadas pelas mãos não de desconhecidos
Mas dos homens que amamos, ou que deveríamos amar
A violência sexual contra mulheres, incluída sua forma mais bárbara, a pedofilia
É uma chaga, uma ferida aberta que a civilização moderna não conseguiu extirpar
E que além de ignorar, de fingir não ver, nega que ela exista
Mas nós, mulheres, mães, filhas, esposas, sabemos que ela existe
Somos o dedo nesta ferida
Nós somos a ferida

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Mistério

O que você tem menina
Que tanto me fascina assim?
Que misterioso enigma
Esconde-se dentro de ti?

Serão esses olhos de felina
Quando os fixa em mim?
Ou será essa pele delicada
Que transpira a jasmim?

Serão os pelos da tua boceta
Que lembram um gracioso jardim?
Ou será a tua boca perfeita
Que beija com gosto de quindim?

Deste mistério sou presa
E dele não consigo fugir
Enquanto eu voo como mariposa
Entorno de ti, você se diverte e ri
Da minha obsessiva tristeza

Oxalá não tivesse escutado
O teu canto de sereia
Não teria caído como um pato
Na tua inescapável teia

Mas é tarde pra choradeira
Se desse pecado sou culpado
E culpado sou, de fato
Carrego a culpa sem petinência

A rua

Na rua se vê beijos
Abraços, mãos dadas
Se vê caras amarradas
Marmitas amassadas
Olhares de medo
Portas abertas e fechadas
Janelas lacradas
Câmeras e guardas
E muito dinheiro
Indo de lá pra cá, de cá pra lá
Trocando de mãos pelos guichês e caixas
Parece complicado
Mas é fácil resumir toda essa bagunça
Se me vem dinheiro, sorrio
Se me vai, corro atrás de mais
Se não fosse o dinheiro
Tudo isso parava
O semáforo não abria
A cidade não dormia
Nem acordava

Na rua se vê também muita gentileza
Algumas verdadeiras, outras falsas
Obrigados insinceros
Tudo de bons irrefletidos
Dá licenças que’u tenho pressa
Desculpas de não posso fazer nada
Não faço as leis, só as cumpro
Em cada esquina, em cada cruzamento
Um encontro e uma despedida
Um rápido aceno
E já se perderam novamente na multidão
Quem sabe no próximo ano
Eu a convide para aquela bebida
– Meu Deus, olha a hora!
Tô atrasado pra reunião!
Meu chefe me mata!
Tchau, tudo de bão
Mande recordações à família
Melhoras à sua tia
E parabéns pela promoção

Por sorte pela rua se vê também loucos
Profetas, artistas, poetas e bêbados
Militantes, anarquistas, punk e hippies
Alguns até são tudo isso ao mesmo tempo
Gente que não fica presa no trânsito porque vai de bike
Que está cagando para o fim da família brasileira
Que acolhe cães e gatos, como eles, sem abrigo

O que seria da rua não fosse os descontentes
Para quebrar a pobre monotonia do dia a dia?
Para nos fazer ver que o cotidiano não é destino
Mas uma escolha que refazemos inconscientemente todos os dias?

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Romântico-cômico

Ame, de dar vexame
Mas não se avexe
Se acharem graça
Só o amor puro-sangue
É cômico de dar dó
Amar é absurdo
E quem não ri de si
Não ri com o mundo