domingo, 27 de dezembro de 2009

Dias mortos

Naquele dia ele acordou meio confuso, incapaz de distinguir a data que nascia pela manhã. Foi direto a cozinha e tomou um copo d’água gelado. Olhou ao seu redor e, sem grande surpresa, constatou que este era um dia como qualquer outro. Os pássaros cantarolavam cantigas urbanas esgarçadas, o sol tocava morno o solo ainda úmido pela madrugada, seus cachorros atracavam-se como de costume.


Ainda sonolento, encheu a leiteira com água e a pôs sobre o fogo para fazer café. “Mas que diabos”, pensava, “alguma coisa está errada!”. Mas não havia absolutamente nada de errado, tudo estava impecavelmente organizado e limpo. “Exatamente!”, deduziu, “eis o quê está errado”. Pois estaria certo em seu pensamento? Talvez sim posto que ele não fosse um homem lá muito organizado e limpo. Na verdade, sua casa vivia eternamente numa arrematada imundice. De fato, a casa, o quintal, os cachorros, até as nuvens estavam demasiadamente limpas. “Ora, que coisa mais estranha...”.


A água já efervescia na panela. Coou o café, bem forte como de costume, pegou uma xícara bem grande (também como de costume) e saiu para o quintal. Aquela sensação de estranheza acompanhava-o. Exceto a lerdeza dos movimentos, como em câmera lenta, tudo estava absolutamente perfeito. A luz, a harmonia do som ambiente. Por um momento passou-lhe pela cabeça que estivesse morto.


Resolveu esquecer isso e pôs-se a trabalhar. Pôs feijão na panela enquanto dava banho nos cachorros; varreu as folhas secas que caíam do frondoso flamboyant que majestosamente irrompia do solo; almoçou; lavou roupa; tomou banho; fez de um tudo. Mas aquela sensação insistia em lhe perseguir os pensamentos.


“O quê será que está faltando?” E, num assomo, deu-se conta de que faltavam pessoas, vozes, olhares. Não escutava absolutamente nada afora o som ambiente do vento e dos pássaros. As crianças não corriam espevitadas pela rua, os carros não passavam apressados com seus motores, o telefone histérico não tocava.


“Por que isso?”, indagava-se confuso o homem. Algo muito fora do comum acontecera. Ele não conseguia lembrar-se de nada que concerne aos homens em sociedade. Não lembrava de trabalho algum que já tivera feito ou que deveria fazer. Tampouco lembrava de seus parentes e amigos, nem nomes nem rostos. Não lembrava do amor.


“A quanto tempo estivera assim, completamente inerte?”. Não sabia dizer. Tudo parecia infinito, eterno, perene e imutável. “Havia parado no tempo?”, “estava numa outra dimensão?”.


Quanto mais se perguntava mais não encontrava respostas. Desistiu de procurar saber. Continuou suas tarefas acriticamente. Extenuado ao fim do dia, com aquela mesma sensação a lhe fustigar a mente, esticou as pernas por sobre a cama. Aquele mesmo som ambiente só foi substituído por uma roupagem noturna. Ainda sem vozes, sem rostos dos quais pudesse se lembrar. Foi deitar-se inquieto com os cachorros aos seus pés. Enfim, num suspiro de desalento, dormiu triste. No outro dia o relógio voltaria a lhe despertar no mesmo horário, sem rostos, sem vozes, sem sorrisos.