domingo, 16 de dezembro de 2012

A beleza do crime

"Alegra-te, lá vem a inspiração
Da praça, em fogo, voam pedradas
Um casal embuçado as mãos se davam
Alegra-te o coração, camarada
Aquela praça lotada, de gente transbordava
Todos uma só voz, em uníssona canção,
Alegra-te porque aí vem a revolução!
Entre pedras, socos e pontapés,
Pais, filhos, irmãos e amigos
Braços dados, beijos e afagos
É a revolução que vem vindo
Alegra-te, porque um novo amanhã é possível
E aquele casal, lindo, entre mil vozes
Um mesmo hino, um mesmo grito
E os dois a afrontar a ordem,
Um beijo para selar o compromisso
Cúmplices de um mesmo crime
Amar e sonhar,
Porque não se ama sem sonhar,
E não se sonha sem amar
Alegra-te, porque é um belo crime
Amar e sonhar,
É um belo crime, camarada."

Homenagem a todos os amantes incendiários pelas praças deste mundo.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O amor de Maria

Maria era filha de uma índia com um negro.
Nunca fora propriamente bonita, desde pequena.
Ao menos era o que toda a gente lhe dizia.
Nas brincadeiras de rua, alcunharam-na de "bugra".
Pobre de Maria, tanto afirmaram, que ela se cria feia.
Ainda menina, viera da Bahia para São Paulo.
Deixara sua terra tão querida, oito irmãos, pai e mãe,
Para trabalhar em casa de família na cidade grande.
Achou estranho quando a patroa, sem afetar a fisionomia,
Pediu-lhe que tomasse banho todos os dias antes do trabalho.
Certa feita, ouviu ela dizer ao marido que gente de cor "fedia".
Sentiu-se humilhada, mas, como Maria era muito humilde,
Abaixou a cabeça e fez-se como que de desentendida.
O problema é que, no fundo, não conseguia não lhe dar razão.
Ora, todo mundo agia assim, como se ela fosse repulsiva.
Na novela, nos filmes, nas séries, indígenas não havia.
Os negros recebiam apenas papeis de segunda categoria.
Quando jovem, Maria teve alguns casos, nenhum sério.
Homem nenhum lhe parecia valer a pena.

Maria desconhecia o amor ideal, e envelhecer sozinha,
Sem companhia, eis o que considerava sua desdita.
Mas seu último caso trouxe à luz um rebento, lindo como o dia.
E Maria não conseguia entender como isto seria possível.
Fruto de sertanejo migrante misturado à sangue indígena,
O menino, de olhos negros e tez retinta, resplandecia.
E Maria, agradecida, era só sorrisos e alegria.

domingo, 22 de julho de 2012

Ao sertanejo

Tem o semblante pesaroso e a tez vincada.
A camisa, mal-ajambrada, é um andrajo.
Leva rota uma douta figura de eleições passadas.
Na terra batida, hirta e seca, não nasce nada.
Capina a pedra dura, lavra o mísero e ocre chão.
Contra a enxada, a carne viva que a madeira lanha.
Na cabeça inerte, sonhos vem e vão, vãos.
De carapinha esgarçada, a mulher labuta na casa de taipa.
Revezando-se entre a panela e os filhos.
Tosse o dia todo, a pobre, está tísica.
Tem filhos, que não leem, não escrevem e não brincam.
Trabalham, desde cedo, sem tempo para ser criança.
Logo que andam, vão parar na diária lida.
O sol inclemente, pouco a pouco o rosto sulca.
Crepita o chão, tisna a pele, crispa a vida.
O casebre guarda um único solitário cômodo.
No traçado de graveto e argila, alegria pouca é muita.
Natal, páscoa, independência, é tudo o mesmo dia.
O açude secou, a macilenta vaca morreu.
A macaxeira não cresceu, e o próprio deus deu adeus.
A vida é curta, a morte é certa, e a lágrima é pouca.
Na cova rasa, um corpo parco, e na mesa menos uma boca.
Deixa sete filhos, a esposa, uma cabra e um cachorro.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Aos trabalhadores do comércio (que não conhecem feriados nem festejam datas)

Disseram-me que se comemora uma data festiva lá fora.
Eu não sei, não. Se não fosse pelo movimento acelerado,
Para mim, este aqui e agora nada teria de diferenciado.
No mármore iluminado, o tempo é igual a qualquer hora.

Já passaram pela loja vários sorrisos abertos, generosos
Eles não desconfiam, mas isto significa trabalho dobrado
Devemos sorrir-lhes de volta, sorriso cínico e mecanizado
Ante o teatro burlesco, temos pensamentos desgostosos

Atendi mais uns, desejando isso e aquilo; “tudo de bom”.
Alguns são mofinas, outros copiosamente desbragados.
Olham, testam, e se vão dando econômicos “obrigado”.
Bem, antes deixassem o trocado do café e da condução.

Corre ali, acode aqui; vende, vende, sempre sorridente.
“Caiu-lhe muito bem, senhora”, é a praxe deste ofício.
”Quer ver algo mais”, “quer que embrulhe pra presente”
“Não? Tudo bem, volte sempre, foi bom fazer negócio”

E eu continuo na mesma, depois de incontáveis natais.
Mais tantos virão, os quais também não hei de festejar.
Entre tantas datas, se quer saber, eu prefiro carnavais.
Trata-se da única data que me é permitido comemorar.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O negócio dos homens

Estamos desesperados por carinho,
Carentes de contato.
O mundo se tornou frio, hirto e plastificado.
Substituímos pessoas por coisas,
E a companhia é agora algo que se pode comprar.
Enquanto alguns vivem sós,
Ainda que mergulhados na multidão,
Outros vivem plenos,
E estão enterrados até o peito na solidão.
Os caminhos se fizeram concreto.
Os amores se mostraram hedonistas,
E a solidariedade, antes abnegada,
Agora é egoísta.
E ninguém enxerga: estamos embriagados.
É natural que humanizemos.
E humanizamos cães, eletrodomésticos, bonecas de pano.
Humanizamos tudo para nos sentirmos humanos.
Talvez negociemos amizades na bolsa.
Talvez se possa investir em amores.
Talvez, na França, investidores especulem com teus dissabores.
Quando se trata de valores, não há limites.
Não há nada que não possam cotar como commodities.
Assim, enquanto vorazes mercadores,
Substituímos fraternidade por retorno líquido e certo.
Sociabilizar é mera questão de contabilidade.
A família deve ser rentável,
E retornável, em caso de defeito.
Capitalizaste o sonho,
Fizeste do sentimento um ativo.
No teu peito bate um relógio.
E teu coração, amigo,
Vendeste num lucrativo negócio.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Entre realidade e sonho, as horas mortas

Reina calma a clara manhã lá fora.
Entre a vastidão do céu e da terra,
Sossegado,
De mãos e braços dados,
Um pequenino casal enlevado,
Entre beijos e afagos,
Se namora.
Tantas coisas ao redor dando-lhe voltas.
Mas, desapercebido e arrebatado,
O casal nem toma nota.
Simplesmente ignora.
Que mais poderia haver no mundo afora,
Senão solidão e felicidade morta?
Diante do fato,
Os de pouca sorte como eu,
Estupefatos,
Entreolham-se e perguntam:
Que faço agora?
Pois eu respondo:
Ri, canta, dança, ama, chora.
Curta a vida,
Passa a hora.
Curta é a vida,
Hora vai atrás de hora.
Esvai-se mais uma agora.
Ri, canta, dança, ama e chora.
Em uma palavra: goza.
Goza a vida porque o que ela dá,
Logo toma de volta.

Aos povos que virão

Aos povos que virão,
Peço penitência,
Por nossa tão infame ignorância.
Meu povo fora estúpido e vilão.
Peço complacência,
Ante a mesquinha ganância,
De um povo ignaro e chão.
Não sabíamos, não tínhamos ciência,
De que estava por vir a mais sombria escuridão.
Faltou-nos mínima sapiência,
Presciência e razão.
Agora, paciência, paciência,
Vocês nos dirão.
De nós, sobrou-lhes vaga lembrança,
E a esperança,
De que dias melhores virão.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Voltas e reviravoltas

A saudade bate forte,
Das coisas que foram embora.
O mundo é grande e dá voltas,
Mas nunca o suficiente.
Nunca é o suficiente,
As reviravoltas.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Cotidianos e desditas

Outro dia insulso
Desenxabida vida
Um fuá cá dentro
Rotinas e desditas
Dores e dessabores
Tantos ex-amores
Havia expectativas
Restou lembranças
Do tempo de criança
Medo da realidade
Medo da verdade
Dê-me esperança
Lídima ansiedade
Sobre o que virá
Coisas da idade
Que, de repente,
Chega sem avisar
E nos vemos nós
Cada vez mais sós
O futuro a avizinhar
A azucrinar-nos
Então, o que serás?
E não há tempo
Ou não há mais
E aquilo que eras
Não será jamais

Entre estradas e devaneios

Tanta pressa pra chegada
Quantas delongas na saída
A morte é tão-só passagem
Híspida e fria é esta vida

Mas necessita-se coragem
Entre encontros e partidas
Tantas idas e muitas vindas
Ao acaso e sabor da viagem
 
Bastante bela é esta estrada
Mas ainda mais bela é a vista
Em meio a matas e pradarias
Ergui minha casa e moradia

Há fim, e para além do fim da linha
Restam-nos magros sonhos solitários
E outros tantos amores imaginários

Vida e poesia

Vivia a poesia que escrevia,
Vida que, como tal, era falsa e vazia.
Aos seus ouvidos,
Ela soava demasiado chinfrim,
Quando não falsa e mesquinha.
Assim como a poesia,
Seu sorriso era morno e sem alegria.
Eis que, num dia qualquer,
Contemplava o movimento da via,
E via que, de idas e vindas,

Da multidão ela se enchia.
Sentiu-se de repente transbordando de vida,
E disse a si mesmo que,
Embora tímida, valia a tentativa.
No quarto, trancar-se-ia,
E só novamente escreveria quando,
Por inspiração divina,
Pensasse alguma coisa de valia.
Mas a graça da escrita não vem de Deus,
Ele o sabia.
Vem do povo, vem do mundo,
Vem, destarte, dos seus.
A certeza gelou-lhe a espinha.
Mergulhar-se-ia em todos e em tudo.
E daquele poço, daquele poço fundo,
Encontraria a substância que sua poesia pedia

Poesia aos fracos

Não se achegue perto, apenas olhe
Senão, logo à sensação do toque,
Qual bicho brabo, ele recua e foge
Deixe que na solidão ele se afogue

Não queira para ti a mesma sorte
Dos fracos, dos de espírito pobre,
Que, temendo escárnio e remoque,
A cada dia um pouquinho morre

Durante toda vida, da vida ele corre
“Se anula, se enterra e se cobre”
 Da desesperança ele fizera um mote

Envelhecendo sonhos

As pessoas que encontrei por essas andanças,
As noites tristes e as cheias de esperança,
As brincadeiras e cantigas de criança,
Tudo, tudo eu levo na lembrança.


Os sonhos e os descobrimentos da infância,
Entre travessuras e meninices, roubei-lhe um beijo,
Ciúmes não havia, nem melindres nem ganância,
Nada entendendo da vida, sentia apenas desejo.


A gente cresce, mete os pés pelas mãos,
Crescer é ficar cada vez mais só e turrão,
A alegria finda e ficamos a procurar uma razão,
Se houver uma, creiam, o esforço não é vão.

sábado, 5 de maio de 2012

É a morte e a vida, Severino

No sertão nordestino a seca grassa novamente. Pergunto-me como anda o sertanejo crispado pelo sol. Haverá mudado alguma coisa em sua vida deste que a caatinga é caatinga? Ainda andará com as mesmas pernas finas, com o mesmo ventre crescido, a mesma cabeça grande? Ainda seguindo as contas do rosário, de vila em vila, fugindo da seca e da fome? Ainda imolado pela mesma sina, a cova rasa, com palmos medida, envolvendo seu corpo parco, cansado de esperar pela terra dividida? Ainda esquecidos... A vida e a morte dos tantos severinos é um poema épico, é morte e vida severina.

Esboço para uma poesia aos trabalhadores construtores de barragens


Refulge o sol através da janela fina,
Reluzindo o ar pejado de partículas
O suor emplastra-lhe a carapinha,
Anunciando o entrar de um novo dia

A mesma cama solitária e vazia,
Não afaga e não lhe faz carícias,
Nem mesmo um abafado bom-dia,

A outro ramerrão que se avizinha

O desjejum modesto é praxe
Uma chávena de café fraco,
De sabor dulçoroso e acre
Acompanha pão velho e chocho
Ele engole o repasto insosso
E sai

Saudade das manhãs com a esposa,
Deixada naquela imensidão agreste
Nalgum chão batido de terra roxa,
Seu único filho bate bola e envelhece

Corta, serra, assenta, aplaina, cava,
Perfura, aparafusa, solda e empilha,
À hora do almoço, dessaboroso da vida,
Não pensa, contemporiza e se cala
Atenaza-lhe a terra a perder de vista,
Que a represa quer ver engolida.

A lida rotineira exige estoicismo
É seviciadora e pouco alvissareira
Na algibeira, nem um troco furado
Nada que se possa ter por salário

Sua força lhe vem de longe, à distância
Da mulher que dele espera uma criança
Do filho ainda na boca da infância
É daí, daí que ele tira a esperança