quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Felicidade

Tantas vezes
Eu já quis
Desistir
De ser feliz
Levar a vida
Sem nenhuma expectativa
Achando que só aceitando
A amargura
Poderia eu seguir
Senão em paz
Que seja não em guerra

Mas nunca consegui
Essa necessidade
De ser feliz
Me persegue
Como uma flor frágil
Que teima renascer
Mais e mais exuberante
No solo pobre e infértil
Do deserto

Ela há de me perseguir
Até o fim dos dias
Até que nada reste
Senão a semente
Esperando outra vida
Outra oportunidade
Pra teimar novamente
Porque ser feliz
É pura teimosia nossa
Relicário
Chama de breviário caseiro
Que nem a morte apaga

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Juventude

Tenho um nó na garganta
O gosto amargo
De quem quis beber a vida
Pura, num só trago
E queimou a boca
E de gole em gole
Ficou bêbado
E a desperdiçou toda
Numa noite
Alegre de porre
Da qual mal me lembro
Acho que toda juventude
É assim mesmo
Um exuberante desperdício
Que se aproveita ao máximo
Justamente desperdiçando-a
Até a última gota
A juventude urge, é pressurosa
Tem sede, e é pródiga
Vive o hoje, o agora
O amanhã lhe parece tão distante, abstrato
O corpo é forte
O coração impetuoso
As pernas infatigáveis
A juventude nunca satisfaz-se
Com coisa pouca
Porque há sempre mais
Por fazer
O mundo é a sua concha
E nem nos damos conta
Que ela um dia acaba
E cá estamos nós
Assombrados por erros
Sentados sobre um amontoado de lembranças amareladas
Do que poderia ter sido
E não foi
Foi-se
Para sempre
E só nos resta perguntar
Estupefatos
Como diabos vim parar aqui?
O engraçado da vida
É que se a vive sem saber vivê-la
E quando se aprende
O tempo da vida já passou
A juventude
Que era primavera
Cheia de promessas
Esfriou, anuviou e fez-se inverno
Então somos velhos
Atulhados em culpas
Ranzinzas e rancorosos
Talvez arrependidos
Talvez satisfeitos
Mas quase sempre muito machucados
Cultivando mágoas
Como fantasmas saudosos do passado
Certos de que é isso mesmo
O fim das ilusões
Que significa tornar-se adulto
Abjurar de sonhos vãos
O fato é que ninguém irá lhe ensinar
Como viver uma boa vida
Como crescer e evoluir
Com sabedoria
É saber que não se encontra
Em livros ou nos ditos da avó
Em pitos de mãe
Ou conselhos de amigos
É preciso descobrir por si mesmo
Não há outro modo
Senão aprender do pior jeito
Com os próprios erros
Haverá tempo ainda?
Sempre há
O que falta
É coragem
A coragem da juventude

Ciência e fé

Não faz mal acreditar em magia
Quero dizer
Acreditar que o mundo
É um lugar mágico, encantado
E que o universo conspira
Lhe diz o que fazer
Se você souber ouvir
E prestar bastante atenção
Pequenas coincidências
Não são meros acasos
Quando se trata dos caminhos da vida
Dos mistérios do coração
Neste caso, a ciência não é uma boa guia
Entre partir e ficar
Desistir ou tentar
Continuar ou mudar
E projetar uma máquina
Arquitetar uma casa
Planejar um sistema
Não há afinidade alguma
Não há cálculo, lei ou fórmula racionais
Capaz de justificar uma escolha na vida
E isso também vale pra opções políticas
No sentido da sociedade
Com a qual sonhamos
E que queremos deixar de herança
Cada escolha na vida
É um salto de fé sobre um abismo
E como a fé é domínio
Dos deuses e deusas
A ciência
Que é arte das pessoas
Esse ser prometeico
Não apita
E se fiar nela é equívoco
Então, quando alguém lhe perguntar
Porque escolheu isso e não aquilo
Diga que você deixou-se levar
Por um pássaro que pousou na sua janela
E grasnou um nome familiar
Por uma nuvem que lembrou-lhe a face de alguém
Por uma árvore que balançou enquanto passava sob ela
A caminho de uma grande aventura
Por aquela estranha sensação no ar
Que sentimos, mas não sabemos definir nem explicar
E que soa exatamente como uma voz lhe dizendo:
Vá em frente, vai dar tudo certo

Tarefas da revolução

Na próxima semana
Tenho que apresentar
Um seminário
E revisar
Três projetos
Pouca coisa
É verdade
Não vim aqui reclamar
Mas acontece que hoje
Tem uma criança em casa
Desesperada por brincadeira
E na ordem de importância
Das tarefas imediatas
Da revolução
É muito mais imprescindível
Para a humanidade toda
Eu diria
Que pilhemos como piratas a praia
Que giremos no galho da árvore
Como ginastas
Como pássaros ou macacos
Que ensaiemos nossos primeiros passos
Na lua
Como astronautas
Que descubramos quem imita melhor
O som dos animais
Isso tudo importa mais
Que qualquer teoria
Que qualquer trabalho
Se queremos um mundo novo
Para as nossas crianças
Comecemos agora mesmo

Agradecimento

Certa feita
Vi-me
Na contingência
De não ter
Nem saber
Como agradecer
Embaraçado
Perguntei
Como poderia
Responderam-me
Agradeça
Ajudando
Alguém que precise
Também
Um dia

Fica mais um pouco

Onde vais com essa pressa?

É tarde

É cedo
Faço-lhe café
Com torrada e geleia
Mas antes fique deitada comigo
No meio peito
Só mais uns minutinhos
Que eu gostei de você
E ainda nem me acostumei com teu cheiro
Muito bom, se quer saber
Cheiras a terra molhada
Como eu ia dizendo
Não posso deixar-te ir
E se eu não mais te ver?
Sabe como é
A vida é cheia de surpresas
Boas e ruins
Tantas coisas podem suceder
A partir do momento que saíres
Daqui, de cima de mim

Não vês que lá fora o tempo passa
A vida acontece
E eu tenho trabalho
Tenho lugares onde estar
Pessoas a falar
E coisas a fazer?

Ora, não é por isso que vais embora
Sem uma transa de despedida
Não, não senta na beirada da cama
Ela é como uma ilha
E nós somos como náufragos
Olha que faço birra
Faço manha
Passo os pés pelas suas costas
Faço cosquinha
E dou mordida
Na bunda
Como é teu nome mesmo?
Ah, verdade, tão bonito!
Não tinha reparado nesta marquinha
Perto do seio
Me conta
Um segredo?

Quem sabe outro dia, eu volto
Tenho que ir, sério

Tu não me enganas, fica agora
Isso, larga o celular
Repara no bico
No meu dengo
Vais resistir assim mesmo?
Lá fora faz sol, é primavera
Mas se você se for
Aqui dentro será inverno
Com chuva
Vai, esquece o mundo
Esquece o emprego
As outras pessoas
Elas usam roupas
Não andam nuas
Como nós dois
Vem, te aconchegas
Que ainda é cedo
E já é muito tarde
Tarde em demasia
Pra não amar
Depois de procurar
Em tantas camas frias
Por um amor como este
Que havemos de ter
Um dia

O querer

Não, não sei
O que quero dessa vida
Se é exatamente esta
A brincadeira
Acaso soubesse
Ela perderia
Toda a graça
E eu não sou estraga-prazeres
Nem me agrada azedar
Surpresas

Quem comeu meu pedaço?

A princípio
Não sabia
Só sentia
Que havia
Nascido
Em falta
Faltando um pedaço
Vim ao mundo
Comido
Arrancarem-me um naco
Tentei preenche-lo
Com tudo quanto é ainda mais vazio
Álcool, amores
E objetos que se compram
De tudo quanto é tipo
Para todos os gostos
Até que ao invés
De cavar
Profundos abismos
Para enxertar
Num buraco estreito
Resolvi entrar
Naquela cova rasa
E me senti confortável lá
Dentro
Vi que ela era menos
Ameaçadora
Se eu a aceitasse
Recolhido
Em seu seio
Deitado
Mas não derrotado
Ainda vivo

Pelas horas

A essa hora
Tem pessoas
Trabalhando
Estudando
Voltando para casa
Cansadas
Pessoas sofrendo
Doentes
Na cama
Pessoas festejando
A vida
As amizades
A essa hora
Tem pessoas
Se amando
E se odiando
Pessoas tentando realizar
Seus sonhos
Tem pessoas sós
E acompanhadas
Pessoas terminando historias
E começando outras
Pessoas se encontrando
E se separando
Pessoas sem nada pra fazer
E outras com tantas
Tem tantas
Pessoas
Que minhas dores
Meus amores
Minhas dúvidas
E angústias
Parecem coisa pouca
Pouca demais
Pra uma só pessoa

Um passeio

A vida é um passeio
Se perca
Se demore
E se for pra se apressar
Que seja só
Pra sentir a brisa
Do vento
Nos cabelos
Estar vivo
É um milagre
Que acontece
Todos os dias
Com bilhões de nós

Revolução

Eu cheguei a acreditar
Um dia
Que só o fuzil
Fazia uma revolução
Que era preciso lavar o chão
Com sangue
Para redimir a humanidade
Depois passei a acreditar
Que só a verdade
É revolucionária
Que é tudo uma questão
De conhecer as coisas
Como elas de fato são
Mas nada disso nos leva muito longe
Porque a verdade
Sustenta-se em última instância
Na ponta de uma arma
E quem puxa-lhe
O gatilho
Fá-lo em nome de uma verdade
Foi assim que descobri
Que só o amor é revolucionário
Sem amor
Não há revolução
Com um fuzil
E uma boa argumentação
Ou vice-versa
Pode-se mudar a cabeça de uma pessoa
Mas se você não toca e muda
Seu coração
É tudo em inútil
É tudo em vão
E aí não tem jeito
Não há multidão
Não há bandeira
Estratégia
Ou instituição
Que resolva nosso problema
Mudar o mundo
Começa dentro
Pelo avesso
Na forma que o vemos
E parte dele fazemos
Se você não aceita a tua família
Teus amigos
Teu vizinho que seja
Com e pelos seus próprios defeitos
Como espera aceitar o mundo inteiro?

Epifania

Conheço poesias
Que se limitam
A um mero arranjo
Bonito
Atraente
De palavras
Como um buquê de plástico
Embora aparentemente
Vistoso e inteligente
Não despertam nenhum sentimento
Nem sequer uma emoção
São como pessoas lindas
Porém vazias
Podem ser sedutoras por fora
Mas estão mortas
Por dentro
Podem despertar tesão
À primeira vista
Mas a foda
É péssima
O gemido
É monótono
E o gozo
É fingido
Assim como as fodas
As boas poesias
São epifânicas

Um pouco de Clarice e de Chico

Sou um pouco
Como Clarice
Nada conheço
Ou quase nada
Das grandes obras
Dos imortais
Da pena
Dos ilustres
Beletristas
Do passado
E suas obras imortais
Quanto mais
Poderia eu
Declamar-lhes
Um poema
Uma estrofe
Sequer um verso
De memória
Escrevo poesias
Porque saídas do fundo
Do mais íntimo
Como um grito
Passado dois dias
Mal lembro que havia-as escrito
Será que tenho algo
De Francisco
Assim como Xavier tinha algo
De poeta?
Alguma coisa me diz
O que escrever
Embora não diga o porquê
Escrevo não com a cabeça
Tampouco com a mão
Não tenho métrica
Nem regras
Escrevo com a alma
O que lhe comunica o coração
Escrevo por instinto
Como faz o salmão
Subindo o rio
Pelejando contra a correnteza
Para ter seus filhos
No mesmo exato lugar
Onde nascera

A morte

Se eu morrer amanhã
Tudo terá valido a pena
Isso quer dizer que a vida
Não tem um sentido
Um ponto de chegada
Um objetivo
Senão um único princípio
O objetivo da vida
É vivê-la
Somente isso
Ela simplesmente é e está
E o que foi, é como deveria
Ter sido
Daí que não há tempo
Para arrependimento
Ou para desperdiçar
Com pudores
Amores comedidos
Medo ou rancores mal resolvidos
A vida é como um relacionamento
Amoroso ou fraterno
Ela não dá “certo” ou “errado”
Aliás, com que critério
Medimos da vida o sucesso?
Ela não é uma corrida de cavalos
Não se está à frente ou atrás
Não há páreo
Tampouco pódio
“Que desperdício
Foi tão jovem
Tinha tanto potencial
Faltou-lhe pouco”
Para quê? Eu pergunto
Se eu morro amanhã
Vou tranquilo
Deixo de mim um pouquinho
Em cada rosto querido
Em cada ombro amigo
Em cada desconhecido
Que cruzou comigo
E de alguma maneira
Para ele
Fez sentido
Esse encontro fortuito
Se eu morro amanhã
Parto em corpo
Mas fico em espírito
Nalgum conselho
Que acaso tenha dito
Nalgum gesto bonito
Que fica de exemplo
Claro, nos muitos malfeitos
Que não se deve tornar a fazê-los
Fico na memória
De um carinho
De um riso
De bons momentos
Fico nesta poesia
No brilho dos olhos
Marejados
De quem a lê
Fico nalgum arranjo de flores
Colhidas pela estrada
Que a uma pessoa amada
Dei de presente
Se eu morrer amanhã
Nada de chororô
Enterrem-me debaixo
De uma árvore
De copa larga e frondosa
Daquelas que farfalham
Suavemente
Ao balanço do vento
Deem meu nome
A um bebê risonho
De cabelos encaracolados
E eu viverei de novo
Pois todo o mundo
Merece uma nova chance
Se eu morrer amanhã
Tenham certeza que a morte
É só o recomeço
De um ciclo que fazemos
Da lagarta à borboleta
De tempos em tempos

Compreensão

Não desejo que não julgues
Que te cales
Juízo
E boca
Nos todos temos
E somos livres
Para exercitá-los
Ao contrário
Quero que digas
Que fales
Aquilo que veio ao mundo
Dizer-nos
Mas para isto
Antes é preciso saber que
A partir do momento
Em que você começa a julgar menos
E a ouvir mais
É quando você aprende a abrir o espírito
Ao invés de fechar o corpo
Em preconceitos
A descentrar teu ego
Rodopiá-lo para fora do centro
Longe de seu umbigo
E a perceber o certo e o errado
Sob uma pluralidade de ângulos
Quanto o teu tão legítimos
Que fazem do teu certo
E do meu errado
Intercambiáveis
Em princípio
É neste exato momento
Em que nasce o entendimento
Mútuo
Como saber compreensivo
Como empreendimento
Coletivo
Como esperas ser entendido
Se não consegues compreender outros sentidos?
Meu mundo é pobre e exíguo
Se não partilhas o teu comigo
Meu espírito é triste e vazio
Se num único indivíduo
Amuado
Ele habita sozinho

Vacilos

Eu já fiz muita coisa
Errada
Mesmo sabendo
Qual era a certa
A se fazer
Senti vergonha
Martirizei-me
De culpa
Humildemente
Peço desculpa
E tal como eu pude
Aprender
Com tanto vacilo
Espero que possam
Perdoar-me
Um dia
Aqueles que tenho ofendido
A morte
É certa
E a vida é muitíssimo
Pouca
Para gastá-la
Toda
Com rancor
Afinal
Que atire a primeira pedra
Quem nunca cometeu
Um só vacilo

Consulta com Dr. Chico

Acuda, Chico!
Venho sentindo
Uma pontada
Aguda
De dor
No órgão
Do amor
Atacou-me febre alta
Tive sonhos
Molhados
Palpitação
E até alucinações
É grave doutor?
Perguntei-lhe
Recomendou-me
Longos passeios
Cantar a plenos pulmões
Junto ao violão
Contemplar a lua
Sair à rua
E beber a tempestade
Pois é inútil dormir
Que a dor não passa

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Deus é criança

Dizem que deus
Escreve certo
Em linhas tortas
Que o universo
É misterioso
E conspira
Nós que não compreendemos
Seus desígnios
Suas maquinações
Eu prefiro pensar
Que deus
O universo
Como quisermos chamar
É uma criança
Que se ri
E se diverte
Às custas
Da nossa condição
Humana
Mas ela não faz por mau
Apenas é criança

A medida da troca

Entre o que tu
Queres me dar
E o que eu
Posso tomar-lhe
E vice-versa
É, precisamente
Onde reside
O ponto arquimedi-
humano
A medida
Exata
Da troca
Da dádiva
Entre duas pessoas
Como sujeitos
Livres e iguais
Em desejos
E sonhos

Amor inventado

Eu e o Cazuza
Adoramos um amor inventado
E não é, precisamente
O amor uma invenção
Uma invencionice
Da cabeça
E do coração?
Não é o amor
A mentira mais honesta
E a verdade menos sincera
Que existe?
Porque o amor não é coisa dada
Um fato que acontece
Que nasce e cresce
Independentemente
Da vontade
É coisa criada
Imaginada
É a autopoeise
Da alma
Que acha
Que finge
Que gosta
Doutra
A tal da cara-metade
E haja metades
Pra tanta metade
Em falta
É casa construída na areia
Tão bela e tão frágil
É traquinice
De criança travessa
Que se perdoa fácil
Com um puxão de orelha, não
Com um beijo na bochecha
De condescendência
E “vá brincar novamente, sua pentelha”
É a mentira mais verdadeira
E a verdade mais mentirosa
Que a gente pode inventar
Ao longo duma vida inteira
Gostosa de mentir
E boa de acreditar
A gente se engana
E se ilude por querer
Querendo
De boa fé
E não há motivo
Por mais que doa de dor
Pra se arrepender
Quem nos dera
Todas as mentiras do mundo
Fossem tão verdadeiras
Quanto mentiras de amor

A estrada

Poucas coisas são mais tristes
Do que a estrada
Vista pela janela do ônibus
No silêncio da madrugada
As luzes miseráveis no horizonte
Contra o negrume lúgubre da noite
São como fogos fátuos
Que atestam a nossa pequenez
A nossa brevidade
As casas de fazenda
Solitárias
Pontilhando como vagalumes
Parecem saídas de um filme de terror
As luzes mortiças das cidades
Como um grande cabaré decadente
Frágeis contra as trevas
Que as ameaçam engolir
As ruas desertas, mortas
Como vielas de cemitérios
Feitos de concreto e aço
Que ninguém traz flores
Os postos e máquinas
As fábricas e armazéns
Os motéis e bares
As igrejas e bordéis
Tudo me lembra abandono e solidão
Que nem o estrelado do céu
Faz mais alegre
As rodoviárias melancólicas
Com tantos caminhos
Não nos dizem pra onde ir
São entrepostos de almas
Perdidas e magoadas
Vendendo-se e trocando-se por aí
O cadência monótona do ônibus
Me embala na poltrona
Mas eu não consigo dormir
A mente vaga e fica
Em cada árvore
Em cada vaca
Em cada pobre casa de beira de estrada
Tristes e solitárias
Que passam rápidas
Fugindo como presas acuadas
Do tempo e da morte
Do desgosto e do esquecimento
Essa noite não tem fim
Porque a viagem
Jornada longa e demorada
É dentro de mim
Não se apresse motorista
Eu não tenho parada
Aonde ir
Descansar a alma
Calejada
Nessa beira de estrada
Sem fim

Réquiem para Manoel de Barros

A margarida
Cortada
Jazia
Derribada
Sobre a grama
Quando a criança
Que passava
Cutucou-a
Cuidando-a
Morta
A flor então
Despertou
Olhou à criança
Através da janela
D'alma
E disse:

Ponha-me
Num copo
D'água
E eu flores
Serei
Nova
Mente

Careta

Eu me divirto
Fazendo caretas
Gosto de me comunicar
Com a cara

Uma careta diz muito
As vezes mais do que palavras
Espécie de telepatia
Como troca de olhares
Passa a ideia de cumplicidade
De “tamo junto”
“Entendeste?”

Para cada pessoa
Uma careta diferente
Pra adultos
Levanto a sobrancelha
Faço cara de sufoco
De “tá duro”
Pra crianças
Mostro a língua
Envesgo os olhos
A careta clássica
Pra quem gosto
Faço bico
Mando beijo
Escancelo a boca
Num sorriso
Mas para desconhecidos
Na rua
Faço cara de paisagem
A mais sem graça
Das caretas

Será que entendem
Que isso é cacoete?
Eu pisco
Mordo os dentes
Lambo o beiço
Faço careta
A torto e direito

O burro (ou Nas asas de Mário Quintana)

Pode gritar
Pode açoitar
Não ando
Além do meu ritmo
Você se irrita
Briga
Ganha uma úlcera
E menos anos de vida
Eu empaco
E quando quero
Caminho
Lépido
Sorrindo
Pra qualquer lado
Que me der na telha
Viverei um século
Nessa leve toada
A vida passa
Todos vocês que acima estão
Sufocando nosso espírito
Vocês passarão
E nós passarinho
Como andorinha
Em algazarra
Sob a chuva de verão

Não somos maus

Não somos maus
Fazemos maldades
Mesmo incontáveis
Não é igual
Somos condenáveis
Mas nem sempre culpados
Dirão os Juízes
Em seu veredito final

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

(A)Flor(a) vagina

A-
Flor-
A
Vagina
Vulva
Em flor
Lábios
E clitóris
De-
Flora

A natureza (da mulher)

A natureza
Não é mãe
Não é virgem
Não é santa
A natureza é puta
É selvagem
É despudorada

A natureza dá
A vulva
Para quem quiser
A natureza gosta de chupar
E de meter
A natureza quer gozar
E sentir prazer
Quer gritar
E gemer
Quer se libertar
E ser
Apenas mulher
Natureza
Livre
Que trepa
Faz sexo
E até amor
Que goza
Sangra e sente dor
Como os bichos
Seus filhos
Nascidos da terra e do mar

A natureza tem
Uma buceta
Úmida
E quente
Caverna que arde
Intensamente
Numa densa mata de pentelhos
Aos que buscam conhecer
Seus prazeres e mistérios
Esteja ciente
Ao entrar
Seus lábios
Ela abre
Se quiser
E fecha
Quando não quer

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Da palavra lavrada à mão e percorrida a pé

Colocada diante
Das misérias
E injustiças
Do mundo
A palavra
Parece tão pobre
A minha poesia
De repente
Parece tão vazia
Minha diatribe intelectual
Tão inútil
Minha dor sentimental
Tão fútil
Afinal
Só entende
Quem caminha
E só exprime
Quem manuseia

Dê comigo um rolê?
A cabeça pensa
Onde os pés estão
E quem não anda
Não sente o grilhão
Que lhe prende

Ensina-me, vida
A pensar com a mão
Como eu vejo com o pé
Mas não se apresse
Ainda há muito chão
Pra calcar com fé

Sinta a vida

Respire fundo
Encha-se de mundo
Divida comigo
O ar que dá a vida
No peito cabe tudo
Mais que imaginas
Sinta teu corpo
Nossos sexos
Teu gozo
Estás viva
Em carne
Sangue e lágrimas
Feitas de sonhos
Loucos

O nada

O nada
O que é?
O humano desconhece
Essa entidade
É-nos talvez a única
Experiência vedada
Estamos sempre cercados
De algo
Que projetamos
Infinitamente
No tudo
Se somos pura consciência
Da vida
O nada é a morte
Cuja melhor definição
É o sono profundo
Eternamente

Tudo acaba bem

Podes saber
Sem porquê
Incrivelmente
Tudo acaba bem
Pois há de ser
Recomeço
Novamente

Igualmente especiais

Não há pessoas especiais
Somos todos iguais
Em princípio
Assim mesmo
Nós todos somos responsáveis
Por fazer as pessoas ao lado
Se sentirem especiais
Como são, de fato

Tribunal do preconceito

Julgar e acusar
As pessoas
É como cuspir
Contra o vento
Tenha certeza
Que volta
Como balas
Bem no meio
Da cara

Estereótipo
E prejuízo
Que diz mais
Não menos
De quem fala
Do que do outro
Feito réu
Sem defesa
No tribunal
Do preconceito

Onde está a justiça
Em julgar o diferente
À luz da tua própria
Ignorância
E verdade?

Hipócrita
Cínico
Cheio de raiva
Eu já cuspi muito
A torto e direito
Mas cansei de lavar
De cuspe a minha cara
Hoje prefiro trocar
Saliva
Num beijo

Não têm explicação

As vezes eu penso
Que só quando pararmos
De pensar
É que vamos começar
A saber
Quando pararmos de desejar
É que vamos ter
Quando simplesmente estarmos
É que vamos ser

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Lembrete para não lembrar

Será que se eu morro
Num dia inédito
Numa esquina sem placa
Entulhada de pessoas emburradas
Que não esquecem os problemas
A caminho de casa
Vão chorar por mim?
E se choram
Como eu posso partir?
Se é na lembrança
Life-support mechanism
Que plugado eu vivo
Materializado meu espírito qual cicatriz
No peito magoado
De quem dá pela minha falta?
Não quero parecer ingrato
Justamente o contrário, eu me importo
E isso torna a retirada, negociada, mais difícil
Eu queria apenas me deixar ir
Sem adeus, obrigado por tudo, um abraço
Aproveito e deixo aqui registrado:
Adeus, obrigado por tudo, um abraço
Foi bom enquanto durou,
Nem sempre, mas
Estou indo, serenamente
E agradeceria se ninguém percebesse
Muito menos viesse junto
Para uns a festa acaba primeiro
Quero dormir
Fiquei bêbado demais
Bebi muito rápido
E a verdade é que eu nunca soube beber
Saio de fininho
E, do quarto, me divirto ouvindo as risadas
A cantoria alta
Amanhã é um dia normal
Para quem é normal
Não pensem em mim
Pensem na desculpa esfarrapada a dar no trabalho
Nas crianças esperando um futuro
Na mãe que a gente tão pouco vê
Depois que cresce
Ou pensem apenas em ficar em casa sem pensar
Vendo tevê
Largados no sofá
A limpeza da casa por fazer
Naquela preguiça boa
De viver
Com tantos bons porquês
Que existem para se viver
Fiquem com eles
Eu só não estaria mais aqui
Não carregaria esse peso do vazio
Que arrasto feito rés
Que tristeza que nada
Mágoa não levo
Enquanto ninguém estava olhando
Cavei um buraco e me plantei
Olhem, um disco voador!
Entrei no mar
E ele deu cabo de mim
Me levou pra navegar
Sem corpo, por aí

Pertencimento

O mundo anda tão cheio
Mas nós nem sempre vazios
Estamos cada vez mais sós
Mas não necessariamente sozinhos
Vivemos tão juntos
Mas em companhia?
Antes eu me sentia
Tão vazio
Tão sozinho
Porque procurava o preenchimento
Nos outros
Foi preciso voltar-me para dentro
Para perceber que o que eu buscava
Não está nem fora
Nem dentro
Mas na relação entre ambos
No vínculo entre eu e o mundo
Se o vínculo é de amor
E pertencimento
Pode-se estar completamente só
E ter o mundo todo
Ao mesmo tempo

Amor útil?

O amor deve
Servir
Pra fazer rir
Se não faz
Não serve
Amor que não ri
Não é amor
É tédio

Contra a pressa

Quem tem pressa
Passa, rápido
E nem vê as coisas
Passarem, devagar;
Anda correndo
E tem medo de tropeçar
Só olha à diante
E não se permite, voltar,
Rodar sobre os calcanhares;
Não olha pra baixo
Pisa em cima
E nem percebe
No que pisou
Não olha para o lado
Nem vê o que desperdiçou

A pressa é inimiga
Da vitória
Ou da perfeição
Mas quem não se apressa
Pouco se interessa
Por competição
Deixa a pressa
Pra quem quer ganhar
Pra quem quer chegar
A algum lugar
Mas que não vê que onde está
É o lugar para se estar
E se demorar
Porque no segundo seguinte
Já não mais se está

Quem tem pressa
Não deixa marcas
Não cria raízes
Não estreita laços
É um solitário
Correndo contra si
E de si mesmo
Numa peleja sem fim
Não se engane
Com o que dizem
O mundo é lento
E a vida de nós só exige
Serenidade e calma

Se você corre
E se apressa
E tem medo de ser atropelado
Por suas próprias pernas
Não culpe o tempo
É você quem põem-nas
Em movimento
Quanto a mim
Que vim a passeio
Apenas abro minhas asas
E voo, ao sabor do vento

Quem tem pressa
Se apressa em ganhar
Ganha tempo pra desperdiçar
E desperdiça o tempo de amar

O anúncio da cigarra

Era plena primavera
Eis que de repente
Ainda tímida
A primeira cigarra
Da iluminada temporada
Inicia sua cantoria
Festejando o verão
Que ainda longe
Mal se anuncia

Enternecido de paixão
Parei com o trabalho
E fui ouvi-la
Deitada numa rede
Tocar seu violão

Sequer durou uma música
Mas foi o suficiente
Me fez ciente
Que mais belos dias
De alegria, virão

Seja bem vinda
Cigarra!
Faz tua folgança
Tua algazarra
Eu, que sou formiga
E só trabalho
Me rio e me divirto
Com a tua farra

Igualmente especiais

Não há pessoas especiais
Somos todos iguais
Em princípio
Assim mesmo
Nós todos somos responsáveis
Por fazer as pessoas ao lado
Se sentirem especiais
Como são, de fato