sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Eu vi

Eu vi os nossos sonhos acordarem num pesadelo,
E vi a ganância mais abjeta cercar-se de desejos.
Vi o desterrado pobre figurar ao rico como objeto,
E seu filho reproduzir na corrente mais um elo.


Eu vi que para se encontrar um amor não basta querê-lo,
E vi suas cândidas belezas esvanecerem-se entre meus dedos.
Vi na timidez de um homem os medos em forma de trejeitos,
E na solidão minha companheira eterna desde o berço.


Eu vi verdades antes hesitantes fazerem-se dogmas,
E vi cegos seguirem sem mais nem mais a multidão caótica.
Vi as cores do mundo se tornar uma tela monocromática,
E as cantigas pueris desvelarem o segredo de sua mágica.


Eu vi passos de um pai capengarem de tão bêbado,
E ví-lo garrear sua própria esposa pelos cabelos.
Vi o filho com o rosto marcado de cinco dedos,
E a mãe, chorando, deitar os olhos para não vê-lo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Eles não podem fugir de um antigo brilho

Peça qualquer coisa em sua vida...
... Aquilo por demais irrealizável.
Não buscarás mais do que um fato
Memorável,
O qual fará suportável tua partida.


Tema pela morte duma velha memória!
Reze pra que não acorde de vagas ambições!
Siga a trilha pobre em que peques toda hora!
Acabe afogado por falta de novas sensações!


Eles sofrem porque não podem estar lá...
Imploram para morrer e voltar para lá...
São como moscas ao redor de uma lâmpada...

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O nascimento do amor

Pressupõe-se que houve um tempo, onde a ponta do começo de tudo nascia em seu seio e de lá se desenrolava para o infinito. É de onde provém a essência de tudo. De lá, tudo imana e para lá tudo converge. Por causa de sua natureza, é o tempo fora do tempo, de modo que não pode ser localizado segundo nosso sistema vulgar de classificação e medição do mesmo. Partimos, então, da premissa que ele existe, existiu e virá ainda a existir.


Certa feita, o universo estava entediado e, criança espevitada e astuta como era, resolveu achar algo com que pudesse entreter-se para passar o tempo. Olhou ao redor e reparou que tudo que havia de bom e de ruim vagava na imensidão negra do infinito, pulverizados em incontáveis partículas, quase como gotículas de água que, quando postas perto umas das outras, formam vapor d’água. Elas vagavam flutuantes pelo véu da noite eterna.


O universo teve a idéia então de juntar todas aquelas partículas num pequeno ponto. Fez força e mais força até que conseguiu coligá-las num único nó. Mas ele viu que um número impar era no mínimo tedioso e decidiu dar-lhe um par. Uma vez que tudo que existia no infinito estava naquele pequeno espaço, teve que cindi-lo em dois para que se formasse um par.


Achou graça vê-los assim tão juntos e tão separados ao mesmo tempo. E como se sabe, o universo se assemelha a uma criança solitária, com muita vontade de brincar e sem ninguém por perto para reprimi-la. Achou, enfim, que poderia fazer um joguinho com aquelas duas metades e, num único lance, lançou cada uma para lados opostos do infinito. Segundo a “lei da atração dos opostos que são a mesma coisa” (obviamente, uma lei que o próprio universo havia promulgado), esses dois pontos haveriam de se reencontrarem de alguma forma, e nessa busca entre eles que residia toda a razão da brincadeira.


Contudo, tem coisas que nem mesmo o universo consegue prever e, assim que as duas partes da totalidade foram separadas, elas começaram a chorar de saudades. Aos poucos, suas lágrimas espalharam-se por todo o infinito. Quando o universo se dera conta disso já era tarde: os dois haviam secado e, por fim, sumiram.


Ele ficou muito triste porque pensou que tinha perdido todas as coisas de bom e de ruim que existia vagando pelo infinito. Ora, o universo era uma criança cândida e inocente, que vivia sozinha e não tinha com quem conversar. Portanto, ele não era mau, era apenas carente. Sentiu-se culpado pelo o que acontecera.


Mas o universo não esperava o que estava para acontecer. As lágrimas se espalharam por todo o infinito e acabaram regando sementes que não conseguiam germinar. Uma dessas sementes foi a que deu origem aos seres humanos. É por essa razão que os homens e as mulheres desse mundo sentem-se incompletos, como se lhes faltassem uma metade. E passam toda a vida procurando a parte que lhes falta. Como cada parte só possui uma única correspondente, exatamente como um quebra-cabeça, eles experimentam peça por peça, ao longo de toda vida, esperançosos em preencher o vazio. Sofrem por isso, porque em sua maioria são mal-sucedidos. Mas aqueles raros abençoados que se encontram e se preenchem num único todo, enfim sentem que podem deixar esse mundo. E quando os dois morrem, seus sentimentos de felicidade espalham-se por todo o infinito levando esperança àquelas metades que ainda não se encontraram.

domingo, 21 de setembro de 2008

Momento de descrença

Fixo olhos temerosos ameaçara
Praguejar aos vômitos. Em vão.
Um longo tapa na cara,
Uma pausa na respiração.

Foge. Projeta-se no horizonte.
Alhures um rosto esquálido sorri.
Braços não afagam, maltratam.
Beijos não acalentam, violentam.
Puro são os tempos imemoriais,
Que de nós fogem em passos ligeiros,
Pois violentados seremos ainda mais,
Acostumados a infindáveis desesperos.

Lamento, mas faria tudo outra vez

Não me lamento
Pelos amores perdidos,
Pelas experiências desprezadas
Que agora são cicatrizes.


Pelas lições que não tirei da vida,
Pelos braços que não abracei,
Pelas merdas que não disse,
Pelos pensamentos mudos e engavetados.


Mas sim,
Por perder amores,
Por desprezar experiências
Que ainda não cicatrizaram.


Por não tirar nada da vida,
Por não abraçar mais braços,
Porque deveria ter dito merda,
Porque emudeci e engavetei tantos pensamentos...


Quem sabe uma segunda chance ainda espreita na esquina do mundo trazendo-me a redenção. Caso ela apareça por aqui queira, por favor, anotar-me o recado, porque, de novo, estou ausente.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Nada de novo no front


Pense em uma família. Decerto a clássica pintura que nos vêem à cabeça é aquela tão tradicional quanto inexpressiva, insossa, enjoativa: mamãe, papai, filhinho(a).

Logo pela manhã mamãe acorda o papai com um beijo mecânico e um sacolejo abnegado. Ele abre os olhos. Deseja morrer. Ela idem. Numa ânsia de desencanto ao olhar a face do marido que deixa transparecer sua desestima por ela, sente vontade de vomitar o café extremamente forte, ingerido minutos antes, no rosto dele. O sentimento de agressão perpassa os dois corações quando, por um breve e acidental resvalo, seus olhares se cruzam. Portanto não se olham. E isso é quase que tacitamente acordado entre eles, pode-se dizer.

Na verdade, esse pequeno ínterim nada tem de anormal. De fato, marido e mulher, ao enjeitarem-se mutuamente, nada mais fazem além de consumar seu cotidiano de casal. É mais outro dia normal.

- Levanta, bem (traste)!
- Porra, mas que horas são mulher? Já lhe disse para não me acordar antes da merda das sete horas!
- São sete horas...

“Essa porcaria de despertador deve ter sido feito numa freqüência sonora audível apenas pelos ouvidos femininos”.

Tal foi o pensamento da mulher, mesmo antes de abrir os olhos. Indagava-se todos os dias acerca dessa questão mesmo sem nunca chegar a uma resposta concreta. Era inútil: a problemática do “rádio-relógio despertador que só podia ser ouvido pelas mulheres” era impassível de uma resolução e ponto final. De fato esta era a única tese que lhe ocorria, uma vez que ela e o marido dividiam o mesmo quarto e a mesma cama, de modo que o despertador podia evidentemente ser ouvido pelos dois quando apitava pela manhã e, a despeito disso, apenas ela levantava. É verdade que esse maldito aparelho estava em cima do criado-mudo situado do seu lado da cama, entretanto por mera força do hábito, já que isso facilitava para ela desligá-lo. Com efeito, o marido certamente ouvia a azáfama fragorosa com que o despertador tentava lhe botar de pé. Isso para ele era tão odioso, quanto se imaginar fazendo sexo com aquela mulher prostrada ao seu lado logo pela manhã. Por isso, preferia manter os olhos cerrados e tentar dormir alguns minutos a mais. O ato sexual vinha cinicamente à mente de ambos apenas como subproduto de resquícios hormonais que certas feitas lhe ocorriam. E isto não passava de uma ou duas vezes por semana no máximo.

“Não, não. Esse desgraçado também ouve o barulho, mas ignora-o” pensou a mulher, finalmente concluindo sua tese, “aproveita para dormir um pouco mais enquanto preparo seu café, ajeito-lhe a roupa do trabalho de maneira a ficar fácil à vista e pego seu jornal na caixa de correio”.

Tal era a perícia com que desempenhava a função, ela desligou a aparelho sem olhar diretamente para ele, apenas usando levemente o tato. Levantou-se, calçou as sandálias e desceu para fazer as obrigações que o destino lhe reservara.

“Grande merda” pensou.

“Merda de emprego, merda de mulher, merda de filho, e merda de cachorro que ficou latindo a noite toda e não me deixou pregar os olhos”.

Tal foi o primeiro pensamento que lhe passou pela cabeça que decidiu não pensar em mais nada até chegar ao trabalho, isso porque poderia lhe ocorrer coisas piores e, como ultimamente dava-se a se entregar impetuosamente aos primeiros desvarios de cólera, achava melhor furtar-se a maiores celeumas. Pôs a roupa numa fleuma típica das manhãs de segundas-feiras. Com os pensamentos ainda pachorrentos e se reorganizando em sua mente, abalançou-se para o café-da-manhã.

Enfim, estavam todos à mesa do café. Ah! sim, havia o menino, filho do casal. Mas este não convém se deter por muito tempo, porquanto ainda era novo demais para entender as angústias de um casal em crise. Sentia lá no fundo do seu coraçãozinho apertado que algo estava errado, e que, em última instância, era ele o culpado. De certa forma, mesmo sem ter a real concepção da situação, vislumbrava o fardo que carregava por ser o único elo que mantinha os pais sobre o mesmo teto, atados a uma coleira curta e condenados a cheirarem seus respectivos ânus eternamente. O pequeno tomaria a exata consciência disso quando se tornasse grande o bastante para perceber efetivamente que seus pais aturaram-se mutuamente, todo aquele tempo, unicamente por sua causa. E isso era um fardo demasiado dolorido para um garoto de a sua idade carregar. Por hora, tentava simplesmente não pensar nisso.

TO BE CONTINUED...

Uma visita qualquer


Palmas. Aproximo-me do portão. Uma mulher de semblante surrado, portando um bebê à tira colo, pede por uns trocados para comprar leite. Respondo-lhe que dinheiro não tenho, mas que poderia lhe dar um litro de leite. Ela argumenta que precisa de dinheiro não para comprar leite natural, mas sim leite em pó – que, suponho eu, rende mais.

Fico em silêncio por alguns instantes. Olho aqueles dois seres abandonados à própria sorte e sinto um forte pesar. A mulher me olha em resposta como se estivesse muda, procurando algo a dizer, “uma ajuda por favor, qualquer uma”, talvez. A criança de colo, nascida no seio da miséria, já parece saber dos meios consuetudinários utilizados para induzir condolência naqueles além propriedade e me olha piedosamente.

“Espere, por favor”.

Entro em casa, caço algumas moedas espalhadas que não somam nem um real, pego um litro de leite e entrego à moça. Ela agradece com um “obrigado” esmaecido, quase inaudível, de quem não tem forças ou de quem não tem mais fé para continuar tamanha vida sofrida. Logo depois se afasta.

Fico inerte, junto ao portão, observando seus passos curtos – de quem não tem para onde ir mesmo – pela calçada em direção à residência subseqüente. Passos cabisbaixos. As pessoas que passam ao lado também estão cabisbaixas. Por medo ou vergonha, não sei ao certo. Ou ainda por desilusão talvez. O certo é que, ao chegar no portão contíguo ao meu, a mulher, na tentativa de livrar uma das mãos do peso da menina, coloca-a no chão, de pé, apoiada nas grades do portão. A criança num gesto inesperado – pelo menos para mim – largou a grade e pôs-se a bater palma.

Fiquei estarrecido. De fato, o meio perpetua e imprime, através da vivência, maneiras de pensar e de agir na consciência de uma pessoa. Uma criança de colo que mal consegue para em pé, consegue largar o objeto no qual se apóia para, instintivamente, acompanhar as ações da mãe. Hoje bater palmas, amanhã – quando aprender a falar – pedir comida. Como um animal que ensina seu filhote a sobreviver, a menina toma as ações da mãe como aprendizado, percebendo que aquele é o meio pelo qual, primeiro sua mãe e depois ela própria, sobreviverão. Essa criança jamais poderia entender o amplo significado social que reside em seu gesto. A mãe sim, e talvez por isso, ela impede que a menina continue a bater palmas.

Meu telefone nunca toca

Meu telefone que nunca toca,
E hoje outra vez não tocará.
Espero... esperançoso de que lembrarão,
Mas não, não hão de lembrar.

“Feliz aniversário” alguém me disse,
Mas que maluquice! Será isso mesmo q’eu ouviste?
Talvez sejam apenas lembranças de minha meninice...

E esse telefone que não toca, meu Deus?
E porque haveria se era isso que você queria!

Eu tentei. Sinceramente, juro que tentei,
Mas, nesse mundo, ninguém nunca quis me ver.
De todos que convivi jamais algum rejeitei,
E assim mesmo, de verdade, quem pude ter?

Se alguém puder me ouvir, me toque!
Qualquer palavra pode ser que me comove.
Por favor, me recorde, me recorde...

E esse telefone que não toca?
... quer deixar recado?
Não, eu espero...

Na sala, um sofá, a TV que nunca liga, o telefone que nunca toca e o silêncio perene. Para além da janela, lá fora, existe barulho, vida, pessoas. Orgia de palavras buzinadas. Um completo desperdício. Não entendem a sorte que os contempla com toda a ordem de sons humanos e, por essa razão, não sabem ouvir. Tolos que não dão o devido valor. São como ilhas cheias de vida que não se comunicam entre si, cada qual com a sua beleza e verdade transcendentais. Aquele alvoroço todo lá fora e aqui o silêncio mortal...

A noite estende-se rumorosa, mas não para mim. Parece tudo tão quieto que até posso ouvir as batucadas solitárias martelando meu peito. Eis que de repente o inesperado acontece: o telefone toca!

Será que dessa vez eu atendo?
Acho melhor não...

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Transcorrer de semanas

As semanas transcorrem provisórias.
Uma a uma.
Tristes e ilusórias,
São cada vez mais insuportáveis e irrisórias.
Nelas não acontecem grandes feitos,
Nem trazem importantes vitórias.
A felicidade parece ser sempre destina à próxima semana,
E a esperança consiste em sobreviver até lá.
A peleja é inglória,
aturada talvez pela promessa da semana adjacente.
É no horizonte que se lança a fé da sorte que nos promete a salvação,
A qual jamais virá.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Cotidiano

Com um forte solavanco ele abre a porta da casa. Está bêbado, exalando o forte odor de álcool adocicado característico da popular cachaça brasileira. Ele põe-se para dentro. Ao entrar, bate a porta contra a batente com tamanha força que a faz pular da cama num espasmo de terror.

Ela já dormia há algumas horas. A brutalidade com que o cônjuge adentrara na casa arrancara-lhe de um sonho. Sonho não, pesadelo. Agora, o pesadelo mais uma vez era real. Não suportava mais o sofrimento calcado no terrorismo imprevisível do marido possuído pelo tal do encosto – como lhe havia explicado o pastor da Igreja Pentecostal. Aliás, marido não. Não mais. Haviam separado-se a dois anos. Precisamente o tempo pelo qual ele estivera “amarrado” pelo demônio. Há dois anos a situação era a mesma, mas o sofrimento, esse começara bem antes, desde o casamento.


Porque houvera de ter se casado com esse traste? A labuta na vida de Maria começara muito cedo. Nunca fora bonita. Sempre tímida, tinha enorme dificuldade em se relacionar socialmente. Por esse ponto de vista parecia-lhe razoável casar com esse homem. Fazer o que? De maneira ou de outra sonhava em ser feliz. E quem não sonha?

Agora lá estava ela. Acordara de um pesadelo onírico para se apreender num pesadelo real. E lá estava ele, revirando as panelas em busca da janta requentada do almoço. A separação não teve efeito nenhum. Ele tinha a chave. E ai de Maria se ela tivesse a audácia de trocar o segredo da fechadura. Toda noite, após muitas dozes de cachaça, ele vinha até sua antiga residência saciar as necessidades libidinosas do seu corpo. Era sempre a mesma coisa: comia o resto da janta, fumava um cigarro, entrava no quarto de Maria e a estuprava.


Maria era forte, calejada, e agüentava estoicamente o sofrimento da vida. Ele era fraco, covarde, acostumado desde pequeno à covardia do mais forte. Mas Maria, caso tivesse outra oportunidade, não sonharia novamente. Já sucumbira à desesperança. E esse era o cotidiano de uma maria qualquer no Brasil.

Quem paga este preço?

Palavras tronchas insufladas de vergonha
Profetizam ainda mais insensatez por vir
Ainda que para nós, distintos de quem sonha,
Haverá de reservar-se um caminho a seguir.

Não profetizarás tal desmedida desavergonhice
Mesmo que benfazeja seja sua sandice!
“Verás sempre o mesmo caminho” eu te disse,
Pois quem sonha, sonha tristes maluquices.

Mas posso sonhar, posso mudar!
Não vê aonde quer chegar?
Sozinho ficará se esta atitude não mudar
Sonhar é para quem ainda não tem lugar pra ficar...

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Volto para casa sozinho

Pois volto sozinho,
Sem casa e sem ninho.
Sou andança sem caminho,
Vivência e medo do delírio.


Para todo sempre tímido,
Com receio de viver desinibido
Sem saber dos gestos mínimos,
Que fazem da vida os mímicos.


Deu-se criança feita de trejeitos
Com todos os caprichos dos soberbos,
Mas são apenas poemas lidos sem jeito.


Difícil ultrapassar, as cantigas de ultramar,
Que fizeram dos trovadores seu pesar,
Os sonhos modernos de se relacionar,
Tornaram-me ilha que a tempestade há de castigar.


Castiga-me fulgurante ira,
Mata-me a vontade de ida,
Porque a volta é mera fictícia.
E a entrega é espiritualmente mais rica...


Não tenho lugar, pois, em tal mar,
Não posso nem pescar, nem nadar,
Talvez seja sede de me afogar...

Viúva de um amor

Ser pessoa da rua,
Só enseja meu ser,
A sair e ver a lua,
Que um dia quiseras ter.

Foste minha, foste pura,
Mas tivera que morrer
Da fome que não cura,
Ao me ver e não me ter.

Tu morreste viúva,
Pois minha boca mais úmida,
Havia tempos virara pública.

E levaste toda a memória
Qualquer perda e glória,
Que nem sequer será mencionada
Na história, virou versos e prosa.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Que posso mais esperar?

Minha vastidão de vida
É dum tédio sem fim,
Pretendo caminho só de ida,
Pra, enfim, dar cabo de mim.

Visto o véu insondável da noite, durmo,
E pela manhã levanto-me num sacode
Acode! Acode! Dia, dê-me rumo!
Mas assim, como quem nada pode,
Não tomo prumo, e logo caem as estrelas,
Recolho-me vezeiro taciturno.
Ao travesseiro, entre tantos pesadelos,
Canto meus mais tristes devaneios.

Maldita vida desdita
Que não sabe se vai ou fica
Destarte, como pode ser-me amiga?
És como a brasa e a pele que nela pica!

Acaso pudesse,
Fecharia os olhos
E gritaria voz que quisesse.
Seria mudo meus poros
Mas saboroso a quem viesse
Ouvir.

Deveria ser diferente!

Deveria ser diferente
Supostamente...
Mas o destino mente
Sinceramente...

Passa a passos falsos,
E aquilo que já não é mais
Vira apenas poeira nos calços...

Queria ainda vestir
Tais belos sapatos
Ou pelo menos sentir
Pouco do passado...

Pra mim? É claro...
Levantar-se!
Me calo.

Caminho então descalço
Faço feridas no duro chão de calos
Machuco-me mas não paro
Assim eu vou e de ti não falo...

A linha 106

Peguei a linha 106. Tudo nela era deprimentemente melancólico. As cadeiras, os passageiros, as fotografias citadinas que se sucediam, apressadamente, uma após a outra pela janela. O ônibus todo estava abarrotado de toda sorte de sentimentos, os quais, quando misturados, consubstanciavam numa única expressão: desamparo.

Sempre tomava a linha 106. Também fazia parte daquele mundo, no entanto, ao invés de pensar em minha própria tristeza, procurava reparar nas alheias, que, para mim, eram sempre mais interessantes que minha própria. Sentava-me na última cadeira do fundo do ônibus, quando esta estava desocupada, e postava-me a fazer daquele cotidiano insuportável um filme, belo e triste.


Conforme as pessoas iam entrando, acomodavam-se sem lógica aparente. Eram frios. Seus rostos lânguidos. Inexpressivos. Fitavam a imensidão de seus pensamentos derrotados postos as suas frentes como capítulos de um filme, cujo termo seria sempre o mesmo. Mesmo assim, eram esperançosos, pois do contrário não estariam ali se sujeitando as agruras da vida cotidiana. Ou talvez sim. As motivações de viver das pessoas comuns são por demais complexas, e eu, em meu lugar, nunca conseguiria compreender semelhante fé no futuro. Gostava de observá-las.


Aquela linha de transporte representava uma ligação entre órgãos corpóreos. Era parte de um sistema sangüíneo que ora fazia papel de artéria, quando bombeava o rico sangue humano das partes periféricas do corpo, levando-o para trabalhar e sustentar a parte central, mais vital e de funções mais “nobres”; ora fazia papel de veia, cuspindo o sangue usado e pobre novamente às regiões da periferia, afim de que estes pudessem se restabelecer com o pouco arroz e feijão de que dispunham. No outro dia, recomeçava o ciclo novamente.


E assim era. Eu, um simples escritor vagabundo, trazia comigo apenas lente e material fotográfico, buscando registrar cada flash de luz que emanava daquela vida. Não tinha que trabalhar – pelo menos não no sentido mercadológico da palavra - o que me dava a possibilidade de analisar de cima os fenômenos sociais que irradiavam daquele pequeno recorte urbano. Anotava cada detalhe em meu pensamento para depois os transcrever em palavras.

O ônibus rasgava veloz as ruas da cidade, recortando as quadras e redesenhando o mesmo polígono infinitas vezes ao dia.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Eu sou a angústia do tempo que passa

Eu sou a angústia do tempo que passa...
Que põe estrelas em movimento
E que colide enormes massas.
Mesmo tão leves como o sopro do vento...

Tempo inexistente quando ancorado
Em cada coração persistente
Que só conhece ilusão e passado
Sem saber de tantos mundos diferentes...

Eu abro meu peito no gume da faca
E tantos outros, assim, iguais ao nada
Nas mãos, só retenho o presente
Passado, futuro é o espaço que me mata...

Regurgita esperança no viver
Quando devorávamos nossos seres
Desfiando belos futuros prazeres
Os quais acreditávamos querer

Sou, serei, talvez te faças ver
Não sei, se fui, há de ser
Distância borrada como sonho
Leva-me num riso tristonho...

Comida do mundo

De tão insensato,
Nem digo.
Porém sinto-me tentado,
Pois digo!
Para além do meu umbigo,
Cabe um mundo inteiro.

Minha infância,
Fora sempre na distância,
Do olfato, do tato, do beijo.
Só me ia, nunca me veio.
E de desforra, sem receio,
Numa bocada comi o mundo inteiro.

Cresci assim, sem o fim, só com o meio.
Afinal, que importa se perto de mim
Existe o começo do mundo inteiro?

Tenho fome de tudo.
Mas quero a comida
Dentro do meu bucho,
E lá encerro minha vida contida.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Razões da escrita

Não sei se escrevo ou sumo,
Corro para além do mundo
Se risco o chão duro,
É com pontapés e murros.

Faz-se tão-somente premente
Livrar os males da mente,
Não vejo nada mais a minha frente,
O mundo perde importância de repente.

Ah! Mundo doente! Ensina-me a ser sorridente!
Ademais, teria outro ensejo a escrever,
Porquanto tudo que vejo me faz sofrer?

As palavras não são compartilhadas,
Jamais ensaiadas e propagadas.
São minhas e delas tiro solitárias gargalhadas.
Porque haja sido da vida comum degredadas?

Longe do costumeiro, ora, vida minha não tem eixo
Caminho de defeitos, palmilhados sem jeito
Deu-se então a escrita sem razão,
Livrai-me, pois, dos males do coração!
Concluo: escrevo e sumo, pois tal é a sina
Em que se vê imiscuída a finalidade da escrita,
Pra então reorganizar o mundo a minha medida.