domingo, 27 de dezembro de 2009

Dias mortos

Naquele dia ele acordou meio confuso, incapaz de distinguir a data que nascia pela manhã. Foi direto a cozinha e tomou um copo d’água gelado. Olhou ao seu redor e, sem grande surpresa, constatou que este era um dia como qualquer outro. Os pássaros cantarolavam cantigas urbanas esgarçadas, o sol tocava morno o solo ainda úmido pela madrugada, seus cachorros atracavam-se como de costume.


Ainda sonolento, encheu a leiteira com água e a pôs sobre o fogo para fazer café. “Mas que diabos”, pensava, “alguma coisa está errada!”. Mas não havia absolutamente nada de errado, tudo estava impecavelmente organizado e limpo. “Exatamente!”, deduziu, “eis o quê está errado”. Pois estaria certo em seu pensamento? Talvez sim posto que ele não fosse um homem lá muito organizado e limpo. Na verdade, sua casa vivia eternamente numa arrematada imundice. De fato, a casa, o quintal, os cachorros, até as nuvens estavam demasiadamente limpas. “Ora, que coisa mais estranha...”.


A água já efervescia na panela. Coou o café, bem forte como de costume, pegou uma xícara bem grande (também como de costume) e saiu para o quintal. Aquela sensação de estranheza acompanhava-o. Exceto a lerdeza dos movimentos, como em câmera lenta, tudo estava absolutamente perfeito. A luz, a harmonia do som ambiente. Por um momento passou-lhe pela cabeça que estivesse morto.


Resolveu esquecer isso e pôs-se a trabalhar. Pôs feijão na panela enquanto dava banho nos cachorros; varreu as folhas secas que caíam do frondoso flamboyant que majestosamente irrompia do solo; almoçou; lavou roupa; tomou banho; fez de um tudo. Mas aquela sensação insistia em lhe perseguir os pensamentos.


“O quê será que está faltando?” E, num assomo, deu-se conta de que faltavam pessoas, vozes, olhares. Não escutava absolutamente nada afora o som ambiente do vento e dos pássaros. As crianças não corriam espevitadas pela rua, os carros não passavam apressados com seus motores, o telefone histérico não tocava.


“Por que isso?”, indagava-se confuso o homem. Algo muito fora do comum acontecera. Ele não conseguia lembrar-se de nada que concerne aos homens em sociedade. Não lembrava de trabalho algum que já tivera feito ou que deveria fazer. Tampouco lembrava de seus parentes e amigos, nem nomes nem rostos. Não lembrava do amor.


“A quanto tempo estivera assim, completamente inerte?”. Não sabia dizer. Tudo parecia infinito, eterno, perene e imutável. “Havia parado no tempo?”, “estava numa outra dimensão?”.


Quanto mais se perguntava mais não encontrava respostas. Desistiu de procurar saber. Continuou suas tarefas acriticamente. Extenuado ao fim do dia, com aquela mesma sensação a lhe fustigar a mente, esticou as pernas por sobre a cama. Aquele mesmo som ambiente só foi substituído por uma roupagem noturna. Ainda sem vozes, sem rostos dos quais pudesse se lembrar. Foi deitar-se inquieto com os cachorros aos seus pés. Enfim, num suspiro de desalento, dormiu triste. No outro dia o relógio voltaria a lhe despertar no mesmo horário, sem rostos, sem vozes, sem sorrisos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Histórias de um futuro próximo

Lembro-me bem quando, ainda criança, ouvia e via pela televisão apelos para que puséssemos fim ao aquecimento global. Faziam conjecturas sombrias sobre um futuro particularmente sem saídas, beco no qual a humanidade estaria condenada. Mas eram somente conjecturas, diziam, isto é, baseados no modo que produzimos e vivemos, ou mudamos radicalmente nossa relação com o mundo, ou perecer-nos-emos. Parece que falhamos fragorosamente.


Suas antevisões de certa maneira se concretizaram. Estamos hoje reduzidos a cacos do que fomos um dia, vivendo dos restos materiais de uma sociedade outrora vencedora. Espalhados, esgueirando como ratos, os homens perderam sua posição privilegiada no planeta. Como afinal essa catástrofe foi acontecer?


Contudo, aquelas vaticinações terríveis do passado viam na causa um mero efeito, e culparam sujeitos inocentes pelo apocalipse. Cobravam atitudes corriqueiras e triviais de homens igualmente banais, o que, segundo diziam, seria suficiente para evitar o pior. “Faça sua parte”, era a frase de ordem mais utilizada. Mas o que poderiam fazer aqueles homens, pobres coitados que mal tinham o mínimo de condições materiais para se sustentarem decentemente, diante da iminência do problema? Absolutamente nada. Metade dos seres humanos daquela época vivia com menos de dois dólares por dia. Vocês crianças certamente não sabem o quão pouco isso significava, porém, acreditem em mim, era pouco, bem pouco. O que deveriam fazer, parar de respirar e morrer?


Enquanto isso, homens privilegiados e reduzidos numericamente, cujos bens utilizavam para explorar aqueles, gastavam os recursos do mundo insaciavelmente. Seus carros, enormes e elegantes, com motores turbo lançavam ao ar mais CO2 por dia do que qualquer operário produziria em toda sua vida. Suas fábricas, ligadas vinte e quatro horas, fabricavam milhões e milhões de mercadorias descartáveis a cada minuto, consumindo matéria natural, cada vez mais e mais, mercadorias que não satisfaziam aos interesses humanos, mas sim à necessidade insidiosa de um ser chamado de capital, o qual acumulava e acumulava, até implodir, como vocês bem sabem. Queimaram as florestas tropicais, caçaram as baleias até a extinção, poluíram rios e mares com lixo não-biodegradável, plantaram bilhões de hectares com culturas nocivas ao equilíbrio ambiental, fizeram isso e aquilo, “pintaram e bordaram”, como dizia minha finada avó. Vocês vêem o resultado. Podem apreciar o que lhes deixaram de herança?


De qualquer maneira crianças, a história de hoje teve apenas uma intenção: fazer justiça aos seus pais, trabalhadores insuspeitos que foram devorados por uma lógica estranha ao ser humano, uma lógica que criaram, embora jamais imaginassem a onde levariam seus descaminhos.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

As rosas brancas e você

As rosas brancas,
Assim como você,
Cantam e encantam
Minha manhã e o meu entardecer


Há de se ter cuidado
Senão nem me vejo envelhecer
Estando sempre do teu lado
Passaria a vida toda a te ver


As rosas brancas,
Assim como você,
Têm pontudas lanças
E ferem um coração à mercê


Há de se ter cuidado
Com seu temperamento
Variam do alto a baixo
Mudam sem consentimento.


As rosas brancas,
Assim como você,
Dão-me esperanças
Dão-me vontade de viver


Não tenho muito cuidado,
Mas, afinal, fazer o quê,
Se com as rosas sinto-me amado?
Sim, as rosas brancas é você.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Nossa pequena história

E foi assim a história: tão singela quanto verdadeira. Quem viu, assim como as duas almas que a escreveram com linhas tímidas, jamais poderia prever os rumos que tudo tomaria. Rumos desconhecidos. Somente engolindo muita coragem pela manhã para segui-los bravamente dia afora. Ainda assim, não houve um momento sequer de hesitação, no qual um dos dois pudesse desistir e voltar atrás.


Olharam para eles de modo desconfiado, incrédulos. Poucos compartilharam ou poderiam compartilhar da crença em um amor aparentemente tolo e inocente. As pessoas têm medo de se arriscarem e não querem que outros façam o mesmo. Acusaram-lhes de heresia e pretenderam jogá-los na fogueira da incompreensão. Resistiram, pois sabiam que um grande amor não nasce todo dia. E no final, ambas as vidas haviam sido transformadas completamente e nada mais seria como antes. Veio a primavera e coloriu de múltiplas cores e tons o cinza invernal que secava os seus corações.


Parece pouco coisa, um amor, diante da imensidão do mundo? Talvez sim. O fato é que, para quem ama, o mundo fica pequeno, tão pequeno que poderia ser pego por uma das mãos e dado de presente à outra que, com ela, compartilha os mesmos sonhos.

sábado, 6 de junho de 2009

Sonho e utopia

O tempo passa à passos largos
No calço, levo botas batidas
De fato, o que trago comigo?
Muitos calos nessas tristes idas


Será mera fantasia?
Como se sonhasse,
Em algum outro lugar,
Nalguma utopia.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Poesia aos amantes

Este coração
é só desesperança e desilusão.
Sofre calado
porque ninguém lhe concede perdão
Se você viesse
e resgatasse-o da solidão,
Então, por ti,
ele bateria em infinda gratidão.

Por medo de represália,
este coração enterra-se no peito
Auto-sepultado,
sem que haja um dia ter amado!
É tão-somente poesia,
assim como Heloísa e Abelardo
seus beijos, meras utopias
que transcendem um sonho irrealizado.

Haveria saída para um tolo apaixonado,
cujo coração entrega-lhe de bom grado,
senão seu incondicional amor ao meu lado?

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A servidão errante

Tristeza é não ter aonde ir
Errante, estamos sempre fugindo,
Voltando, regredindo o devir
Passos, lágrimas e uma história infame


Tantas idas e, afinal, quantos regressos?
Eles trazem em seu esquálido seio,
Indeléveis estigmas impressos
E quando pedem atenção, quê lhe dão?


Balaços, tapas, pontapés e prisão
É a sina que tanto lhe rogaram
Sem culpa, abraça-me a sua dor
Enquanto outros, em seu lugar, gozaram.


Não vou e não fico, paro em lugar algum
Haveria então destino para alguém assim?
O sem identidade, de verdade, nada em comum
Meu tempo é pouco e faço pouco desse ínterim


Melhor seria ser um dos excomungados!
Teria motivo enfim para ser julgado,
Condenado. Porém, não passaria ao largo,
Da história de quem mutila o próprio passado


Veja miserável, és tu o futuro chegado!
Saia da miséria da qual és ainda turiferário
Vou contigo, pois sei que, em meu íntimo,
Sigo-te e tu segues comigo o mesmo caminho.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Dois amantes que se perderam por aí, como tantos outros...

Costumávamos deitar na varanda lá pelas tantas da madrugada, olhávamos para as estrelas e ficávamos a tecer teorias. Dizíamos: “está vendo aquela estrela? Pois bem, na órbita daquela pequena estrela tem um planeta, muito parecido com o nosso e, nesse exato momento, dois amantes estão, assim como nós, olhando para o céu estrelado e, de todas as estrelas possíveis de se ver, estão olhando para cá, para nosso pequeno sistema solar e dizendo: ‘assim como nós, num pequeno planeta daquela estrela tem um casal olhando para nós dois aqui e desejando que sejamos muito felizes’”.

Naquela época nos sentíamos tão fortes juntos que o mundo era pequeno e o universo era passível de ser conquistado. Éramos tentados então a deixar esse mundinho, queríamos voar por aí, transformar-nos em luz. Quase conseguimos. Mas depois, sem mais nem menos o mundo cresceu, cresceu e ficou tão grande que envergou todo seu peso sobre nossos ombros e agora não conseguimos mais olhar para as estrelas. Na verdade, nem lembramos mais delas. Andamos com passos de anões e orgulho de gigantes. Trabalhamos para plantar novas porcarias na terra, das quais não precisamos, e as nossas antigas histórias que crescem insistentemente feito ervas daninhas, como para nos dizer: “estamos aqui ainda, recorde-me, recorde-me!”, nós as arrancamos e dizemos: “não preciso mais de vocês!”.

Hoje, quando por um acidental resvalo, olha para aquela estrela e penso: “será que os dois amantes estão lá ainda, olhando para nós aqui com ar de reprovação por termos falhado? Será que ficam tristes porque abandonamos o sonho de alcançar as estrelas? Será que ainda torcem por nós?”

terça-feira, 7 de abril de 2009

Um dia qualquer no ônibus

Por entre os carros neurastênicos que costuravam as veias asfaltadas do centro da cidade, entrecortava um ônibus suburbano tipicamente prosaico. Dentro dele, um observador e, ao seu entorno, uma vívida realidade social cotidiana se desenrolando, a qual comumente não se dá valor algum.


Ao lado do observador, duas mulheres de idades distintas sentadas juntas conversavam. Pelo cabelo desgrenhado e mal-cuidado, impregnado de preocupações, pelo rosto sem maquiagem e profundamente sulcado, pelas roupas simples cujas peças não combinavam entre si, e pela bagagem acondicionada em sacolas de plástico que ostentavam em impresso um slogan de algum supermercado qualquer, podia-se inferir decerto a origem social daquelas mulheres, de onde vinham e para onde iam – potencialmente.


A julgar pelo diálogo, eram vizinhas de muro, situados nalgum bairro periférico qualquer, aonde se varrem para além das vistas aqueles cuja existência insiste em ser negada, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, são indispensáveis na medida em que constituem a base necessária para a reprodução da vida daqueles cuja existência insistentemente é glorificada.


Aqueles que mais têm, mais apegados se tornam àquilo que lhes possuem, e menos estão dispostos a dar.


A mulher mais jovem contava à senhora de mais idade que lhe acompanhava sobre seus infortúnios:
- é amiga, a situação num tá fácil não. O salarinho magro do marido não tá resolvendo. Só por Deus mesmo pra ter misericórdia de nóis!
- pra mim também não tá fácil não viu, Margarete. Minha única renda continua sendo só a pensão do finado. Depois que eu saí da casa dos Rodrigues não consegui mais emprego de doméstica. Se pá é coisa ruim que lançaram pra cima da minha pessoa.
Após uma breve pausa, como quem engole à seco o fel segregado pelos pensamentos pungentes, elas continuam:
- mas quem tá mal mesmo é minha irmã, sabe dona Maria. Aquele pilantra safado sem-vergonha do meu cunhado continua bebendo até a mãe dele se for preciso! Num tem cristo que dê jeito. Ela me diz que não vê a hora de sair daquele lugar, entende? Pegar as crianças e cair no mundo. Eu até que dou razão. Afinal, quem que güenta isso por muito tempo? Mas a praga diz que se ela fizer isso ele sai de pexera na mão e acaba com a vida dela.


Dona Maria, sem aparentar muito contristada, retruca:
- ah minha filha, no meu tempo num tinha esses tipo de questionamento não, tinha de agüentar mesmo, calada e olha lá! Porque se falasse alguma coisa que “ele” num gostasse era tabefe na oreia na certa!
- pode até ser viu Maria. Talvez as coisas sejam melhores do que antes. Quanto a mim, fui abençoada pela glória do Senhor!
Ouve-se um “amém” intercalado, e ela continua:
- minha menor tá espichando rápido, e, do jeito que é esperta, vai me ajudar bastante, se Deus quiser!
Outro “amém”, pra se ter certeza.
E com um profundo pesar carregado na face jovial,mas ao mesmo tempo resignada, Margarete continua:
- cê sabe né Maria, vou pagar os meus pecados com a mais velha, que nasceu especial.


As duas pequenas sentadas inocentemente no banco da frente permaneciam alheias à conversa tempestuosa das adultas atrás de si. Apenas observavam a paisagem da cidade que transcorria como num filme: tudo tão grande, tão magnético e luminoso, tão diferente de onde moravam.


O ônibus para num semáforo. Ao seu lado emparelham um grupo de motoqueiros, montados em nomes estrangeiros dos mais variados: suzukis, hondas, kawazakis, e por aí em diante. Era um belo dia para desfilarem com suas jaquetas de couro e seus motores portentosos. Zumbindo e rufando, seus motores não significam trabalho, mas sim diversão, e as ruas representavam seu GP. Para quem pode, a vida é bacana e despreocupada.


Nem as mulheres, nem os motoqueiros tomam conhecimento da existência de uns dos outros. E a vida segue seguindo...

sexta-feira, 13 de março de 2009

A história de Jorge

- Caralho, mano! Os verme tão subindo!


A movimentação dos soldados-bandidos sobre a laje das toscas construções fez-se frenética nem bem os rojões de treze tiros espocaram pelo ar. Cada qual, de sobreaviso pelas carreiras de cocaína aspiradas ao longo de toda a noite passada, assumia apressadamente seu posto no campo de batalha ante o alerta geral dado pelos fogueteiros. Soldados e vapores formavam a linha de frente do front aos brados de “atividade, atividade porra!”, ditados pelo gerente da boca. O som metálico das armas sendo engatilhadas, misturado às batidas do rap compunha uma trilha sonora minimalista, sucessora daquelas dos antigos filmes de faroeste. A tensão transpirava pelos poros aguerridos dos esfarrapados soldados e espraiava pelo ar, indo diluir-se no clima de pavor que instantaneamente tomava de assalto a favela. Ouviam-se as janelas e portas sendo fechadas. Aqueles desapercebidos que tiveram a infelicidade de serem pegos de sobressalto, rapidamente se escafediam pelas vielas ou buscavam refúgio nalguma das poucas portas ainda não cerradas pelo medo.


Esse estado de guerra fria perene, que para alguns pode parecer fantasia ou mesmo um eco à distância, faz parte do cotidiano daqueles pobres homens e mulheres condenados à existência miserável dos guetos modernos. Contudo, antes de fazê-los fraquejar, forjou ânimo de aço no bojo dos seus corações. Acostumados como estão a esses constantes dissabores, imprimidos diariamente à ferro e fogo em seus semblantes à guisa de um ferrete, resistem estoicamente às agruras daquela vida como você e eu jamais seriamos capazes de suportar. Com exceção das mães – as quais são muitas –, o clima de pavor logo dá lugar ao de indiferença e trivialidade em face de mais um capítulo dessa novela, a qual a Rede Globo não se atreve a encenar.


Num piscar de olhos, tudo começava e, no piscar seguinte, acabava-se. Era como um lapso na malha do tempo-espaço cotidiano, cuja gravidade que emanava da densidade daquela matéria social paralisava o tempo de tal maneira que a sensação era de infinidade. Mas, segundo nosso sistema de medição de tempo, era tudo muito rápido. A polícia dificilmente se arriscava para dentro do coração da favela, restringindo-se amiúde ao entorno. Ora, aqueles meninos-soldados são bem armados, irascíveis, com ódio na veia e prontos a atirar. Com efeito, quem em sã consciência, com filho e mulher, seria suficientemente insano para invadir aquela ratoeira e trocar tiros à queima-roupa com eles? Haveria de ser muito idealista ou igualmente raivoso. Não, não. É melhor disparar à distância, ainda que os riscos inerentes sejam demasiados onerosos aos civis. Toda a favela é transformada, assim, em uma enorme trincheira urbana, na qual cada lado combatente descarrega sua munição através da “terra de ninguém” – como era chamada a extensão de terra balizada por duas trincheiras na Primeira Guerra Mundial. A diferença é que muitas histórias de vida moram ali.


Da laje do seu barraco, o pequeno Jorge observava a tudo com um arrebatamento íntimo que misturava emoção e ansiedade. Olhos fixados na movimentação constante daquele jogo que opunha homens de fardas contra moleques de andrajos, ele perscrutava e esquadrinhava cada canto desse cenário bélico apinhado de casebres, civis e cachorros vira-latas, aonde se desenrolava a ação. Aquilo era verdadeiramente muito mais empolgante do que os filmes – que ele sabia falsos – de guerra exibidos domingo à tarde na televisão. Jorge tinha esse espírito aguerrido que certos humanos carregam impresso desde o nascimento na personalidade. Alguns acabam consubstanciando-o em 9mm de ferro cintado. Ademais, esse espírito é sempre mais vivo na tenra idade, ainda não dilapidado pelo superego social e ávido por aventuras homéricas. Afinal, quem nunca se divertiu na infância brincando até o esgotamento de polícia e ladrão? Era emocionante traçar planos de fuga engenhosos, prender vagabundos que perturbavam a ordem ou fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Eu, de minha parte, preferi sempre o lado criminal. Contudo, depois de crescermos, ou a brincadeira fica séria ou perdemos a graça e o entusiasmo pela coisa.


O pequeno Jorge, protegido sempre por um santo forte como fora, já dava sinais de que a brincadeira logo se tornaria séria, talvez ainda cedo demais. Não completara nem a casa decimal e já poderia ser flagrado fazendo pequenos “bicos” para a boca vizinha à sua casa, o chamado “avião”. Em troca de alguns trocados, que para ele pareciam uma fortuna, Jorge buscava refrigerante, entregava recados, buscava “peças” entocadas. Mas o melhor pagamento mesmo era ganhar o respeito daqueles bravos homens, cujo calibre faz a lei, e cuja vida desafia diariamente a ideologia apregoada pelos mantenedores do status quo, evidenciando a lógica que a sociedade teima em velar. Ele recebia cafunés na cabeça, agrados de todo tipo, ganhava doces, lanches, ensinavam-no a atirar em latinhas, davam-lhe dinheiro para levar à mãe, e ai de alguém que tirasse onda com a sua cara na escola. Os traficantes da boca apelidaram-no de “psico”, dado a intrepidez com que desempenhava as funções e a vontade indelével de fazer carreira no mundo do crime. Jorge era um guerreiro, e a vida para ele só tinha sentido se você a tomasse pelas mãos e a obrigasse a dar-lhe o que pedia; se necessário for, na ponta de um revólver. Fora assim que aprendera, como um bicho-do-mato ataca quando encurralado contra o sopé de uma árvore. A vida é selva, e ele prometia para si mesmo tornar-se leão. Evidente, portanto, que seu espírito dava mostras promissoras de outro líder paralelo cultivado desde cedo no ventre das inoportunidades concedidas como esmolas àquele povo. E isso é inadmissível para a sociedade auto-proclamada do “bem”. Agora, o mau, ah sim, se pudessem, queriam mais era escaldar o coro de delinqüentes primaveris como Jorge. E, de fato, era isso mesmo que faziam. O rancor de Jorge ainda era diminuto perto de tudo o que a sociedade ainda tinha para lhe ensinar e fazer medrar em seu coração. Seu tempo era pouco, porém faria bom proveito dele. Ele seria o escarro da hipocrisia voltando em dobro, triplo, à cara daqueles porcos.

sábado, 7 de março de 2009

A história de dona Salete

E foi por não ter mais para aonde ir que dona Salete decidiu, novamente, partir. De mais a mais, haveria outra solução? Pensou ela que não e, acostumada como estava à vida de retirante caçadora de parcas oportunidades, arriscou-se a seguir as recomendações do pessoal diretor da empresa – agora “sua” ex-empresa. Pois então, haveria de se tornar uma pequena proprietária, associada de uma cooperativa. Pelo menos, foi isso que haviam lhe dito.


Antes disso, ao longo de quase uma década ela havia destinado todas as suas forças e sonhos àquele emprego. Mãos extremamente hábeis para a costura, Salete não demorou a ocupar uma vaga em uma das centenas de máquinas overlock localizadas no setor de confecção de uma grande multinacional têxtil na grande São Paulo, após dias penosos no pau-de-arara. Sua mãe até tentara dissuadi-la daquela idéia maluca, onde tantos foram e jamais voltaram, mas nem o mais sagrado dos conselhos pôde declinar a sua obstinação. E, para fazermos justiça, foi devido a uma razoável dose de sorte que a migrante consegui se estabelecer relativamente bem no famigerado Sul. Que fique claro, relativamente bem para uma retirante fugida da fome e da seca do sertão nordestino, sequiosa por fazer um destino melhor do que aquele que sua mãe lhe deixara de herança. Ora, ela não conquistara grande êxito material, mas tinha um barraquinho próprio em um extremo periférico da maior cidade brasileira, de modo que isso não poderia, relativamente, ser considerado como uma vitória? Faltava-lhe um sem-número de itens dos mais variados bens de consumo que a televisão (isso ela havia conseguido comprar) lhe oferecia todos os dias, porém, na medida do possível, sentia-se feliz com o pouco que seu suor pôde adquirir.


E agora lá estava ela a ouvir com pesar o discurso retórico do funcionário-chefe, encarregado de passar aos funcionários não tão graduados como ele os resultados da reestruturação do setor produtivo da empresa. Os tempos eram difíceis, dizia ele, e por isso os executivos tiveram que tomar decisões igualmente difíceis. Não faziam aquilo senão com uma tristeza solene, contudo a situação urgia por tais medidas drásticas e elas seriam levadas a efeito pelo bem geral. Segundo o funcionário-chefe, que naquele momento fazia o papel de porta-voz da empresa ou de capitão-do-mato, como queira, a empresa não era mais capaz de manter o seu setor produtivo, o qual havia se tornado demasiado oneroso e, portanto, deveria ser terceirizado como parte da meta de corte de custos. Essa era a tendência geral segundo a qual centenas de empresas vinham procedendo a partir do último quartel do século passado. Além do mais, as ordens vinham de cima, não sendo, portanto, negligenciáveis. Isso porque, na verdade, a empresa em que dona Salete laborou com tanto afinco e fé não era, de fato, uma multinacional, mas sim uma das muitas filiais subcontratadas de uma das seletas corporações transnacionais que oligopolizam o setor. Ela costurava o cós e a barra das calças da afamada marca – as quais ela própria não tinha dinheiro para comprar – que, por sua vez, seriam vendidas mundialmente. Desse modo, quem efetivamente produzia não era a marca propriamente dita, mas empresas sem-nome espalhadas pelo Terceiro Mundo todo, como a de dona Salete. A lógica disso, entretanto, escapava-lhe da compreensão. Como meio de aumentar seu poder sobre o mercado interno, ao mesmo tempo em que barateava o custo produtivo das mercadorias voltadas para a exportação, os CEOs da empresa-mãe decidiram inverter parte do fluxo de investimento externo direto naquela empresa brasileira, ao invés de apenas subcontratá-la. Noutras palavras, a multinacional incorporou a empresa menor que empregava Salete, comprou-a. A estratégia de aumentar a acumulação baseando-se na exploração do trabalho não parava por aí, naturalmente.


É sabido que, nos setores produtivos com menos desenvolvimento tecnológico e, consequentemente, com utilização mais intensiva da mão-de-obra, como é o caso do setor de confecção, as estratégias de aumento do lucro baseiam-se na exploração sem limites do trabalho. E para isso, nada melhor do que a riqueza humana que irrompe do solo de países emergentes, com abundância de mão-de-obra barata, alguma proteção social pública que mitigue ligeiramente a pobreza, e com leis trabalhistas flexíveis e/ou facilmente burláveis. Eis aí a cobiça que nosso imenso território tupiniquim desperta. Claro que não estamos sozinhos, evidentemente, China, Índia, México, e outros desafortunados nos acompanham. Contudo, aqui o retorno é promissor demais, com garantias e risco zero. Pergunte ao FMI, ele irá concordar com essa afirmação. Dirá que somos ótimos devedores porque pagamos em dia e sem protestar acerca dos juros e spreads; que os investidores não correm riscos em face do nosso governo, visceralmente avesso à revoluções e sempre complacente com as demandas do capital internacional – especialmente o financeiro; e que os macacos brasileiros são vigorosos trabalhadores, satisfazem-se com pouco e, o melhor de tudo, são reacionários inatos. Pode perguntar, o risco do Brasil é nulo!


Naquele dia, ao tomar o primeiro ônibus urbano que a levaria novamente para a favela, o cortiço moderno aonde a grande São Paulo varre para debaixo do tapete todas as noites aqueles miseráveis que a sociedade civil insiste em ver só ao longo do dia na forma de trabalhadores, os pensamentos de dona Salete sobre o acontecido eram uma mixórdia desordenada e ininteligível. Suas colegas de trabalho ficaram extasiadas com a possibilidade de ascenderem da posição de empregadas de pouca monta para a de proprietárias – ou co-proprietárias – do próprio negócio: a cooperativa. Mas Salete, cuja vida tinha sido ensinada pela mais arrematada carência e como lição aprendera a subserviência, cultivava certos receios. Afinal, se essa mudança haveria de ser boa, por que o sindicato advertia sobre a depreciação dos direitos trabalhistas, que a cooperativa acabaria por menoscabar? Os diretores da empresa afirmavam que o salário maior que elas receberiam na cooperativa compensaria a falta dos benefícios sociais como o décimo terceiro salário e o fundo de garantia, e tudo o que elas teriam que fazer era se esforçarem ao máximo para produzirem bastante, ganhando cada qual proporcionalmente em razão do montante produzido. Ademais, elas seriam donas da sua própria empresa! Mas toda a incerteza que lhe fustigava a mente deixava dona Salete preocupada e, somando-se a isso os problemas familiares com um dos dois filhos e com o ex-marido, seu coração seguia apertado pelas ruas esburacadas da grande São Paulo.