segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Sobre lembrança e saudade


É possível escrever sobre a saudade?
Quero dizer, é possível racionalizar um sentimento tão indefinível e, ao mesmo tempo, tão universal quanto a saudade?
Quem quiser conhecê-la terá de experimentá-la.
Portanto, não se pode conhecê-la mediante definições ou fórmulas sintéticas.
Mas, conhecer, neste caso, não é a mesma coisa que entender.
Pode-se chegar a conhecer a saudade – e todo mundo, de fato, a conhece –, sem chegar a entendê-la.
Trata-se de um sentimento imediato, que se vive empiricamente, mergulhado na vida cotidiana.
Pergunte para qualquer pessoa o que ela entende por saudade e você terá variadas respostas, sempre, todavia, fruto de experiências concretas e imediatas.
Mas a mesma pessoa não saberia definir e encerrar o sentimento saudade em uma fórmula acabada.
Talvez mesmo nem se trate disso.
Talvez estejamos a fugir da verdadeira questão ao colocá-la nesses termos.
A saudade é um sentimento muito poderoso, quem sabe seja, com efeito, o sentimento mais poderoso de todos, porque ela junta todos os sentimentos possíveis, passados e presentes, num mesmo momento.
A experiência da saudade consiste na fusão, na justaposição entre passado e presente.
Trata-se de uma revivência: revivência de reminiscências.
E, como tal, implica na rememoração.
Quando se revive um momento, um sentimento, uma história, em suma, uma lembrança boa, feliz, está-se sentindo saudade.
Saudade daquele momento, daquele sentimento, daquela história.
Coisas que passaram, que ficaram no passado, cuja experiência tem-se vontade de experimentar novamente.
Mas as lembranças nem sempre são fiéis, ao contrário.
Na maioria das vezes, são sempre refeitas, idealizadas.
A saudade, assim pensada, parece uma farsa.
Tem-se saudade de algo que não aconteceu, ou que, pelo menos, não aconteceu exatamente da maneira pela qual se tem saudade.
Seria justo pensar desta maneira?
Por outro lado, que diferença faz?
Se tal ou qual fato que está na base de tal ou qual lembrança feliz não irá voltar nunca, de modo que não se poderá vivenciá-la concretamente de novo, o que interessa agora é a lembrança em si mesma, seja verdadeira ou falsa.
Se ela vem com feições novas, lapidada e polida, tanto melhor.
Parece ser esta a essência da lembrança: consiste num fato (momento, sentimento, experiência, história) filtrado pela subjetividade daquele que o viveu, ao mesmo tempo em que se acrescenta tudo o mais que se viveu mas que não tem relação com aquela lembrança em particular.
Saudade e lembrança...
As lembranças são sempre pessoais, e não importa o fato de que os fatos que lhe dão azo sejam sempre coletivos.
Dizem que a experiência da morte é a experiência da vida, condensada num só instante.
Deve ser este o maior e mais intenso sentimento que se possa experimentar.
Há que se ter uma vida o mais plena possível para se ter também uma morte o mais plena possível.
Por vezes a saudade irrompe em profusão das entranhas da mente, instada por um porre, por um composto químico lisérgico, etc.
Se tivéssemos uma vida mais prenhe de sentido, mas humana, ela viria com mais facilidade?
Neste mundo, nesta vida, neste cotidiano, o presente impera.
Mal temos tempo e – ainda menos – o costume de olhar para o céu, de perscrutar as estrelas.
Ou seja, mal temos tempo e costume de sonhar.
Quem dirá reviver o passado?
Eu gostaria de sentir tudo aquilo que eu vivi, sejam momentos bons ou ruins, alegres ou tristes, num único feixe fulminante de lembranças.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Sobre epicurismo e estoicismo


Com quais olhos deve-se encarar a vida?
Qual a postura com que enfrentá-la?
Que figura devo fazer dela?
Mas, sobretudo, como prospectar o futuro?
Este é o enigma, esta é a causa da angústia: Futuro (com maiúscula).
Em que consistirá?
Como garanti-lo?
Enfim, haverá um “F”uturo?
Uns dizem que a vida é para ser vivida; assim como não se bebe meio trago de cachaça, não se bebe a vida pela metade.
Será esta uma atitude puramente hedonista?
Vive-se o hoje, o hic et nunc, jamais o amanhã.
E vive-se para si mesmo, nunca para os outros.
Eis aí um ponto de vista limitado, que certamente não pode trazer conforto nem satisfação.
Senão a autosatisfação, perheaps.
Mas quem vive para se autosatisfazer, não vive.
Ora, eu não conheço o sentido da vida, mas sei que ele não se restringe às proporções mesquinhas de meu umbigo.
No entanto, a despeito de sua pequenez, é este um ponto de vista corrente.
É como se dissessem: “Não desperdice sua vida dando-a a outros; ela é uma só, e é curta: viva-a para você!”
Faz sentido, porque é sintomático.
Viver o imediato é sintoma de uma vida que não garante o amanhã.
Mas e o outro lado do problema?
Deve-se viver uma vida ascética?
Deve-se ser sempre abnegado e altruísta?
Quem defende esse ponto de vista anula a própria individualidade.
Será mesmo?
A satisfação do indivíduo estaria, aqui, na satisfação da coletividade.
E quando se pensa na coletividade, pensa-se inevitavelmente em um Futuro.
O indivíduo morre, o social fica.
Recria-se, reflexiona-se.
É e não é.
É sempre isto e outra coisa, porque Histórico (também com maiúscula).
O papel do indivíduo é construir uma pequena parte dessa coletividade.
E, para tanto, deve lutar, não por si, mas por todos.
Mas quem garante que essa fome de sociedade será saciada?
Porque alguém abnegaria dos magros prazeres que se pode ter nessa vida, alimentado tão-só pela fé num horizonte que foge inapelavelmente de nós?
É muito pouco, a recompensa adiada para o pós-vida, de fato, é muito pouco.
Quero-o (queremo-la) já!
Talvez os dois extremos sejam igualmente nocivos.
Nem epicurismo, nem estoicismo.
Nem agora, nem amanhã.
Há que amar, há que se ter filhos, família e amigos!
Mas há também que deixar tudo o mais de lado para lutar por um amanhã.
Enfim, há que lutar, sem deixar de amar.

Adendo: se a poesia é lírica, opera com imagens ao invés de operar com argumentos, será isto poesia?