sábado, 20 de julho de 2013

A aldeia

A nossa aldeia fica numa região de magnífica beleza natural – que vocês chamariam de região remota do território brasileiro. Cortada por rios que nos abrem caminhos e nos fornecem alimento – que vocês costumam comparar a estradas e/ou geradores de energia. Cercada por rica e preciosa fauna e flora – e que vocês veem como simples ativos econômicos. Alguns de vocês dizem que a civilização ainda não chegou por estas bandas, e que é preciso ou impedir a sua eventual chegada, ou nos integrar harmoniosamente a ela. Outros dizem que ela chegou, fazendo de nós tão capitalistas quanto o resto do Brasil e que, por isso, não podemos ser tratados diferentemente dos demais brasileiros conforme um estatuto especial. Compreendo que o termo “civilização”, o qual vocês usam para referirem-se a si mesmos, é bastante etnocêntrico. Ora, também somos uma civilização. O problema é que a vossa civilização não consegue conviver com a nossa. Diferentemente do que dizem muitos de vocês, a (sua) civilização chegou sim até estas bandas, assim como chegou a cada rincão deste mundo, mas, tal como Jano, ela tem duas faces, e a nós mostrou apenas a face mais perversa. Sua chegada, entretanto, não anulou a nossa civilização, embora tenha corrompido-a completamente. Os mais velhos quase não se reconhecem mais nos mais novos. A tradição foi, hora pra outra, destruída. Eu pertenço a essa nova geração, e discordo em muita coisa do que pensam os antigos. Queremos ser tratados como todo brasileiro da cidade grande, e ter garantidos os mesmos direitos; queremos ter assistência médica, acesso à educação, condições de vida descentes para sustentar nossos filhos; não queremos nada mais do que a lei garante e a cidade oferece. Eu, pessoalmente, sonho em fazer faculdade, quero me formar em medicina. Contudo – e neste sentido faço coro com os mais velhos –, apenas não queremos ter de abrir mão da nossa cultura; não queremos que isso signifique o fim das nossas tradições, dos nossos ritos, costumes e crenças. Vocês estão errados quando dizem que somos atrasados, quando afirmam que, para nos integrar, para nos tornarmos um de vocês, temos de abrir mão de tudo aquilo que faz sermos o que somos.

Nossa aldeia já passou por muita coisa, já teve muitos inimigos e já enfrentou muitas guerras. Mas vocês são de longe o inimigo mais temível. E temo que não podemos ganhar. Já nem é possível mais recordar o tempo em que tínhamos por inimigo apenas a tribo do litoral. Isso foi há muitas e muitas luas atrás, antes de vocês de chegarem. Quando vocês apareceram, vieram doenças, guerras, fome, escravidão; sem mencionar o genocídio cultural empunhado na ponta da cruz. Mas isso também foi há muito tempo; antes mesmo de nascerem os anciãos da nossa aldeia. Relativamente, tivemos sorte. Enquanto milhões dos nossos irmãos desapareceram da face da Terra, mortos ou absorvidos por vocês, permanecemos aqui, preservando na medida do possível o nosso modo de vida. Agora chegou a nossa vez. É hoje que enfrentamos a maior ameaça, que travamos nossa maior guerra. Primeiro foi a colonização, nos anos 70, que trouxe grileiros e latifundiárias para cá. Junto com eles vieram o gado e as madeireiras. Depois foi a soja. À medida que roubavam nossas terras, nossa terra sagrada, ancestral, íamos sendo cada vez mais empurrados para pequenos espaços que vocês chamam de reservas – reservas, como se fôssemos animais em extinção (aliás, a palavra “animal” não tem para vocês o mesmo significado que tem para nós). Pois bem, essas “reservas” não são suficientes para sustentar nosso modo de vida. Quase não caçamos mais, e nossas roças mal dão para a subsistência. Vivíamos muito bem até isso tudo acontecer; vivíamos na fartura, mas agora vocês olham para nós e dizem que somos indolentes, que nosso modo de vida é pobre e precário. Não costumava ser assim. Agora dependemos da ajuda do governo para sobreviver. E nem preciso dizer-lhes que o vosso governo pouco ou nada olha por nós.

Infelizmente, isso não é tudo. A mais nova ameaça vem de construtoras, empreiteiras, grupos de investidores, que lograram um bom negócio levantando hidroelétricas no meio da floresta amazônica, entupindo suas veias e derramando seu sangue na forma de lagos tão grandes quanto pequenos oceanos. Vão levantar uma próxima daqui, e nossa terra será inundada, restando apenas um exíguo espaço para onde transladaríamos a aldeia, que, segundo o consórcio construtor, seria de alvenaria, teria água encanada e luz instalada. No começo, todos ficamos empolgados com a boa-nova. Achávamos que a tal da civilização de vocês havia chegado trazendo, enfim, outra cousa que não a humilhação, a dor e o sofrimento. Disseram-nos que construiriam escolas para nossos filhos, hospitais para nossas famílias. Prometeram mundos e fundos, e a maioria do meu povo, exceto os mais velhos, que sabiamente permaneceram céticos, foi arrastada pela mesma doença da qual sofrem vocês: a ganância. E não me refiro ao sonho de uma vida melhor, mais digna. Não preciso lembrar-lhes a situação precária em que vocês nos deixaram. Refiro-me à ganância pura e crua pelo dinheiro e por luxo. Porque se a água, a luz, as escolas e hospitais só ficaram no papel, o consórcio nem pestaneja quando se trata de nos comprar com bugigangas que vão desde pick-ups a celulares e notebooks. Como o governo não fiscaliza o consórcio para que ele cumpra as contrapartidas sociais em compensação aos impactos decorrentes da obra, ele negocia diretamente conosco porque é muito mais barato nos dar bens de consumo do que construir e manter uma infraestrutura para que nos sustentemos sozinhos. Mas como todo bem de consumo acaba, uma hora tudo isso acabará e nos veremos sem nada novamente, numa condição ainda pior do que nos encontrávamos. Seria esta uma versão contemporânea da burla com que os vossos antepassados lograram os nossos?

De qualquer forma, ela tem funcionado. As mercadorias e o dinheiro que invadiram a aldeia têm divido as famílias, ensejado querelas e disputas, fomentado a discórdia. Nem em meus piores pesadelos imaginaria um modo tão fácil de nos corromper. Ninguém trabalha mais, vivemos dos presentes. Nosso único trabalho é ir à cidade cobrar do consórcio mais e mais presentes. O cacique, responsável por esse trabalho, está enriquecendo, e todos estão desconfiados. Circulo pela aldeia e vejo tevês sintonizadas em programas que exibem, como uma vitrine virtual, imagens da opulência em que vocês vivem, da alegria e festa que é a vida de vocês. Na cidade grande tem bares, restaurantes, cinemas, shoppings, condomínios, clubes. Fico imaginando se todos vocês vivem assim mesmo. Não importa, isso tudo seduz o meu povo. A nossa aldeia está, de fato, diminuindo, e ninguém sabe se se extinguirá um dia. Os jovens estão todos a abandonando e indo para a cidade para fazer a vida, como vocês dizem; sonhando com glamour e conforto. Assistem à tevê, vêem a caminhonete 4X4 turbo que nosso cacique dirige, os computadores, etc., e cuidam que, se isto é só um pequeno gostinho do que a civilização de vocês pode oferecer, seria burrice continuar ali, naquele fim de mundo, vivendo uma vida atrasada. Quando chega notícia de algum jovem índio lá na capital, elas não são muito animadoras. Mas como está a maioria empregada, ganhando um salário mínimo, dizem que não querem voltar, que é melhor assim, e o ciclo de ilusão recomeça. Ironicamente, muitos dos que saíram da aldeia por causa da barragem agora trabalham nela, ajudando a construí-la. Os que ficam se entregam à bebida ou à vagabundagem. Quase ninguém mais liga para os rituais, para os costumes e práticas, como se eles tivessem se tornado, dum dia para o outro, bobagem, tolice de índio. Os mais velhos estão desolados.

Olho para esses jovens que agora escutam músicas estranhas, pintam o cabelo e o cortam a la Neymar; que usam roupas diferentes, coloridas e com palavras estranhas, e me pergunto como tudo isso aconteceu. Foi tudo tão rápido, nós nem vimos acontecer. Existe esperança, no entanto. Ficamos sabendo que existem outras aldeias na mesma situação, e elas estão se organizando para lutar contra isso tudo. Pessoas do mundo de vocês também estão conosco, organizando-se e ajudando-nos a se organizar em coletivos e movimentos sociais. Um dia até paramos as obras da usina, e vamos parar novamente. Quantas vezes for necessário. Já até declaramos guerra ao governo federal, fizemos documentários, realizamos congressos, fomos ao exterior denunciar o que acontece aqui. Agora sabemos que é possível fazer diferente, é possível mudar o sentido das coisas. Não desistiremos; resistiremos. Ou nos tratam com dignidade e respeito, ou podem enterrar-nos aqui mesmo.

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