segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Estupro

A primeira vez que aconteceu
Eu tinha 10 anos de idade
Meu pai me surpreendeu
Brincando com a minha “perseguida”
Que era como minha mãe chamava a vagina
Só depois, adulta, foi atinar para o significado
Meu pai veio até mim, cara de bravo
Como quem vai me bater
Eu tinha medo dele, desde que me entendo por gente
Disse-me que eu estava fazendo algo muito feio
E que ia me dar uma lição por isso
Eu era uma criança, estava me conhecendo
Começava a sentir coisas lá embaixo que não entendia
Quando andava de bicicleta sentia cosquinhas gostosas
Tinha curiosidade, mas mal sabia que tudo isso acabaria ali, naquela tarde
Aos 10 anos de idade
Ele terminou de tirar a minha roupa
Abaixou as suas calças, tirou o pau pra fora e me penetrou
Sentia aquele corpo grande e pesado
Cheirando a álcool e cigarro
Pressionando sobre mim
Invadindo um território inexplorado
Primeiro, a dor, inexprimível dor, o sangue
Depois, a culpa, o nojo, a vergonha
O medo de olhar ou tocar novamente a minha vagina
A sensação de que a boceta é uma coisa ruim
E de que de alguma forma eu era culpada
A raiva que sentia
Não conseguia nem me olhar no espelho
Depois daquele dia, ao invés de desabrochar
Fechei-me sobre mim mesma
Minha infância acabou naquele momento
Mas também não me tornei adulta
Fiquei numa espécie de limbo
Em que me encontro até hoje
Conforme a o tempo passa
A ferida fecha, vira cicatriz
A vida segue, você casa, tem filhos
Mas sabe que existe um vazio bem lá no fundo do peito
Uma dor pungente, muda, que corrói pelas beiradas
Você a sufoca, mas ela quer gritar a todo custo
Você a esquece, e de repente ela sai da escuridão e te ataca
Nunca tive um orgasmo sequer com um homem
Nem com o meu marido, nem com nenhum outro
Até hoje sinto ansiedade e medo na hora do sexo
O jeito que um homem me olha na rua pode ser suficiente para me causar um ataque de pânico
Dedico esse relato inventado, mas absolutamente verossímil
A todas as mulheres que já sofreram, sofrem ou sofrerão violência sexual
Ou de qualquer outro tipo, pelo simples fato de serem mulheres
Mulheres que sofrem caladas, desde ainda crianças
Crianças que ainda nem sabem o significado das palavras violência, abuso, estupro
E terão que conviver com suas consequências traumáticas a vida toda
Casos como o meu não são exceção, senão a regra, a mais terrível das regras
Somos prisioneiras em nossas próximas casas
Vitimadas pelas mãos não de desconhecidos
Mas dos homens que amamos, ou que deveríamos amar
A violência sexual contra mulheres, incluída sua forma mais bárbara, a pedofilia
É uma chaga, uma ferida aberta que a civilização moderna não conseguiu extirpar
E que além de ignorar, de fingir não ver, nega que ela exista
Mas nós, mulheres, mães, filhas, esposas, sabemos que ela existe
Somos o dedo nesta ferida
Nós somos a ferida

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