quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Lá vai um bobo

"Lá vai um bobo!"
Dizem as más línguas.
Ele sorri a torto e direito,
Cumprimenta a todos,
Fala consigo mesmo,
E - o cúmulo do absurdo -,
Canta e dança na rua!

É um pobre coitado,
Não sabe da maldade do mundo,
Não vê ruindade em nada,
Nem malícia em ninguém.
Unas acham graça,
E dele fazem troça,
Outros se condoem,
Como se se condói de uma criança,
Inocente e desemparada.
Mas quando ele passa,
Todos apontam e dizem:
"Lá vai um bobo!"

Por fim, escarnecem,
Sorriem o sorriso dos altivos,
E ao bobo dizem:
"A mim ninguém engana!
Contra a maledicência de todos,
Eu os maldigo por antecedência!
Estou sempre preparado, precavido;
Ora, se o mundo todo é-me inimigo,
Ando sempre desconfiado,
Pronto a dar o troco."

Mas o bobo nem dá por isso;
Segue pelo mesmo caminho,
A cumprimentar de graça,
A sorrir sem motivo,
A cantar e dançar e sozinho;
Mas um dia todos dirão:
"Lá vai um bobo!
Um bobo de bom coração,
Um bobo bom e feliz."

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Fracasso / Vitória

O fracasso ou a vitória
Uma linha tênue
Uma corda bamba
O fio de uma lâmina
De um lado a glória
Do outro a infâmia
Espada de Dámocles
A colecionar cabeças
E são sempre os inocentes
Os primeiros a perdê-las

domingo, 24 de novembro de 2013

O corpo

O corpo
De cada qual, o quinhão no mundo.
A única coisa que se traz na chegada,
E se deixa na partida.
Do ponto de vista, é o ponto;
Substrato de todo ser.
Ao mesmo tempo que comunica,
Isola, separa - é muro,
Que entre o eu e o mundo se levanta.
O que veem estes olhos,
Que a terra um dia há de comer,
Ninguém nunca poderá ver.
E se alguma vez é dado saber de si,
Dificilmente, do outro,
Se sabe alguma coisa com certeza.
Alguém uma vez disse,
Que cada um sabe a dor e a delícia,
De ser quem se é.
Mas quão triste não é,
Não se fazer entender;
E não conseguir sentir,
Na pele, a dor e a delícia alheia.
Eu queria rasgar este corpo,
Me dissolver no outro,
Sentir com a sua mão,
Ver com os seus olhos,
E beijar com a sua boca.
Ser contigo, ser com todos,
Sem corpo, um só.

Estou aqui pra brincadeira

Daquele que faz as coisas de forma bem feita,
Que leva a sério o que faz,
Diz-se que “não está para brincadeira”.
Ora, nesse sentido,
Não se sabe em que se diferencia
O trabalho do ser humano
Do da máquina,
Quando, na verdade, o que nos caracteriza,
É justamente a poiesis grega,
Lúdica e criativa por natureza.
Criar e fazer é, necessariamente, ter prazer.
Por isso, contra esse saber corrompido, eu digo:
Sim, eu estou pra brincadeira!
Sim, eu vim ao mundo a passeio!

sábado, 23 de novembro de 2013

Clara

Não se avexe, não
Branca mais preta
Mineira d’alma africana
De sangue carioca
E ginga baiana
De pés caiçaras
E coração sertanejo
Embora não foste mãe
Deixaste uma nação inteira órfã
Quando ainda tão cedo
Por arcanos do destino
Partiste deste mundo
Deste Brasil tão mestiço
Que cantaste com teu canto
Que encantaste com teu sorriso branco
Que comoveste com teu pranto
Mas a luz que a teus filhos deixaste
Essa clara claridade
Clara guerreira
Não se apaga jamais
Quando tu cantas
Canta também a esperança
A profissão do povo brasileiro

O mal do século

Vejo o celular
Só uma mensagem
É da operadora
Penso em fazer aquela ligação
Prometida há meses
Quem sabe depois

Checo a caixa de e-mail
Só me chegam cartas automáticas
Geradas por computador
Ofertas de produtos
Oportunidades de quitar aquela dívida
Às vezes até me cumprimentam pelo aniversário

Quanto à caixa de correio, nem me dou ao trabalho
Há tempos que por lá só chegam contas
Boletos, faturas de cartão
Chegam também livros
Mas livros não são pessoas

Procuro então no Facebook
Idem, nenhum contato
Paro para ver as pessoas interagirem
Constato, com horror, que eu virei uma espécie de voyeur
Satisfeito a observar as relações alheias
As pessoas parecem estar felizes
Pejadas de vida e de amor
Cada vez mais emocionalmente próximas

Decido sair
Me escoro no balcão do bar
E fico a olhar em volta
Risadas, gestos, beijos, abraços
Comemoram, juntos
A alegria de estar vivo
Tomo meu pileque
E volto para casa
Quem sabe um filme

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O dia

Amanhã é o dia
Amanhã é o grande dia
Porque todo dia é grande
Para quem que crê
Que toda manhã traz sempre um novo dia
Então, para o novo, prepare-se
Como se amanhã fosse o dia
Como se amanhã o grande dia fosse
Porque todo dia não é mais nem menos: é grande e é novo.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Dilema

Eis o dilema de hoje:
Fazer de tudo um pouco, mas não ser bom em nada
Ou especializar-se numa única cousa, fazendo-se bom nela
Ao preço de manter-se cego, ignorante e alienado a tudo o mais?
Aceitar a condição de pequena peça
Desimportante por si mesma, mas indispensável ao todo
Cujo funcionamento se concebe como uma máquina
Ou pretender, ainda que condenado de saída ao fracasso
Tal como os heróis trágicos dos mitos antigos
Abraçar o mundo todo, e tudo que nele existe
Com esses pequenos e tíbios braços de humano?
Difícil dilema, pois se, de um lado, tudo aquilo que chamamos de cultura é necessariamente bom
Quer-se, legitimamente, aproveitar de todo este legado, como é de direito
Embora, de outro lado, se cada um de nós se satisfizer em ser um diletante
Correríamos o risco de botar freio nesse processo, de empacar e não ir além
Em suma, ser tudo é não ser nada, e não ser nada é ser tudo
Como resolver essa dialética?
Critica-se hoje a especialização burra, advoga-se a interdisciplinaridade
Mas, na prática, fazemos tudo ao contrário
Aquela erudição culta, aquele saber enciclopédico
O traço distintivo do tempo das luzes, não existe mais
Um dia matamos Deus, só para nos colocar em seu lugar
Agora matamos a nós mesmos, e, caídos, tornamo-nos fatalistas, niilistas, cínicos
Tal como as peças de uma máquina seriam se tivessem a faculdade de pensar
Eis aí outro dilema fundamental, que se não resolvido, não se resolve o primeiro: como colocar, no lugar dos caídos humanos deificados
Humanos humanizados?