terça-feira, 7 de abril de 2009

Um dia qualquer no ônibus

Por entre os carros neurastênicos que costuravam as veias asfaltadas do centro da cidade, entrecortava um ônibus suburbano tipicamente prosaico. Dentro dele, um observador e, ao seu entorno, uma vívida realidade social cotidiana se desenrolando, a qual comumente não se dá valor algum.


Ao lado do observador, duas mulheres de idades distintas sentadas juntas conversavam. Pelo cabelo desgrenhado e mal-cuidado, impregnado de preocupações, pelo rosto sem maquiagem e profundamente sulcado, pelas roupas simples cujas peças não combinavam entre si, e pela bagagem acondicionada em sacolas de plástico que ostentavam em impresso um slogan de algum supermercado qualquer, podia-se inferir decerto a origem social daquelas mulheres, de onde vinham e para onde iam – potencialmente.


A julgar pelo diálogo, eram vizinhas de muro, situados nalgum bairro periférico qualquer, aonde se varrem para além das vistas aqueles cuja existência insiste em ser negada, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, são indispensáveis na medida em que constituem a base necessária para a reprodução da vida daqueles cuja existência insistentemente é glorificada.


Aqueles que mais têm, mais apegados se tornam àquilo que lhes possuem, e menos estão dispostos a dar.


A mulher mais jovem contava à senhora de mais idade que lhe acompanhava sobre seus infortúnios:
- é amiga, a situação num tá fácil não. O salarinho magro do marido não tá resolvendo. Só por Deus mesmo pra ter misericórdia de nóis!
- pra mim também não tá fácil não viu, Margarete. Minha única renda continua sendo só a pensão do finado. Depois que eu saí da casa dos Rodrigues não consegui mais emprego de doméstica. Se pá é coisa ruim que lançaram pra cima da minha pessoa.
Após uma breve pausa, como quem engole à seco o fel segregado pelos pensamentos pungentes, elas continuam:
- mas quem tá mal mesmo é minha irmã, sabe dona Maria. Aquele pilantra safado sem-vergonha do meu cunhado continua bebendo até a mãe dele se for preciso! Num tem cristo que dê jeito. Ela me diz que não vê a hora de sair daquele lugar, entende? Pegar as crianças e cair no mundo. Eu até que dou razão. Afinal, quem que güenta isso por muito tempo? Mas a praga diz que se ela fizer isso ele sai de pexera na mão e acaba com a vida dela.


Dona Maria, sem aparentar muito contristada, retruca:
- ah minha filha, no meu tempo num tinha esses tipo de questionamento não, tinha de agüentar mesmo, calada e olha lá! Porque se falasse alguma coisa que “ele” num gostasse era tabefe na oreia na certa!
- pode até ser viu Maria. Talvez as coisas sejam melhores do que antes. Quanto a mim, fui abençoada pela glória do Senhor!
Ouve-se um “amém” intercalado, e ela continua:
- minha menor tá espichando rápido, e, do jeito que é esperta, vai me ajudar bastante, se Deus quiser!
Outro “amém”, pra se ter certeza.
E com um profundo pesar carregado na face jovial,mas ao mesmo tempo resignada, Margarete continua:
- cê sabe né Maria, vou pagar os meus pecados com a mais velha, que nasceu especial.


As duas pequenas sentadas inocentemente no banco da frente permaneciam alheias à conversa tempestuosa das adultas atrás de si. Apenas observavam a paisagem da cidade que transcorria como num filme: tudo tão grande, tão magnético e luminoso, tão diferente de onde moravam.


O ônibus para num semáforo. Ao seu lado emparelham um grupo de motoqueiros, montados em nomes estrangeiros dos mais variados: suzukis, hondas, kawazakis, e por aí em diante. Era um belo dia para desfilarem com suas jaquetas de couro e seus motores portentosos. Zumbindo e rufando, seus motores não significam trabalho, mas sim diversão, e as ruas representavam seu GP. Para quem pode, a vida é bacana e despreocupada.


Nem as mulheres, nem os motoqueiros tomam conhecimento da existência de uns dos outros. E a vida segue seguindo...

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