É possível escrever sobre a saudade?
Quero dizer, é possível racionalizar um sentimento
tão indefinível e, ao mesmo tempo, tão universal quanto a saudade?
Quem quiser conhecê-la terá de experimentá-la.
Portanto, não se pode conhecê-la mediante definições
ou fórmulas sintéticas.
Mas, conhecer, neste caso, não é a mesma coisa que
entender.
Pode-se chegar a conhecer a saudade – e todo mundo,
de fato, a conhece –, sem chegar a entendê-la.
Trata-se de um sentimento imediato, que se vive
empiricamente, mergulhado na vida cotidiana.
Pergunte para qualquer pessoa o que ela entende por
saudade e você terá variadas respostas, sempre, todavia, fruto de experiências
concretas e imediatas.
Mas a mesma pessoa não saberia definir e encerrar o
sentimento saudade em uma fórmula acabada.
Talvez mesmo nem se trate disso.
Talvez estejamos a fugir da verdadeira questão ao
colocá-la nesses termos.
A saudade é um sentimento muito poderoso, quem sabe
seja, com efeito, o sentimento mais poderoso de todos, porque ela junta todos
os sentimentos possíveis, passados e presentes, num mesmo momento.
A experiência da saudade consiste na fusão, na
justaposição entre passado e presente.
Trata-se de uma revivência: revivência de
reminiscências.
E, como tal, implica na rememoração.
Quando se revive um momento, um sentimento, uma
história, em suma, uma lembrança boa, feliz, está-se sentindo saudade.
Saudade daquele momento, daquele sentimento, daquela
história.
Coisas que passaram, que ficaram no passado, cuja
experiência tem-se vontade de experimentar novamente.
Mas as lembranças nem sempre são fiéis, ao
contrário.
Na maioria das vezes, são sempre refeitas,
idealizadas.
A saudade, assim pensada, parece uma farsa.
Tem-se saudade de algo que não aconteceu, ou que,
pelo menos, não aconteceu exatamente da maneira pela qual se tem saudade.
Seria justo pensar desta maneira?
Por outro lado, que diferença faz?
Se tal ou qual fato que está na base de tal ou qual
lembrança feliz não irá voltar nunca, de modo que não se poderá vivenciá-la
concretamente de novo, o que interessa agora é a lembrança em si mesma, seja
verdadeira ou falsa.
Se ela vem com feições novas, lapidada e polida,
tanto melhor.
Parece ser esta a essência da lembrança: consiste
num fato (momento, sentimento, experiência, história) filtrado pela
subjetividade daquele que o viveu, ao mesmo tempo em que se acrescenta tudo o
mais que se viveu mas que não tem relação com aquela lembrança em particular.
Saudade e lembrança...
As lembranças são sempre pessoais, e não importa o
fato de que os fatos que lhe dão azo sejam sempre coletivos.
Dizem que a experiência da morte é a experiência da
vida, condensada num só instante.
Deve ser este o maior e mais intenso sentimento que
se possa experimentar.
Há que se ter uma vida o mais plena possível para se
ter também uma morte o mais plena possível.
Por vezes a saudade irrompe em profusão das
entranhas da mente, instada por um porre, por um composto químico lisérgico,
etc.
Se tivéssemos uma vida mais prenhe de sentido, mas
humana, ela viria com mais facilidade?
Neste mundo, nesta vida, neste cotidiano, o presente
impera.
Mal temos tempo e – ainda menos – o costume de olhar
para o céu, de perscrutar as estrelas.
Ou seja, mal temos tempo e costume de sonhar.
Quem dirá reviver o passado?
Eu gostaria de sentir tudo aquilo que eu vivi, sejam
momentos bons ou ruins, alegres ou tristes, num único feixe fulminante de
lembranças.
Um comentário:
Ali ela vive, feliz e bem-aventurada no divino éter, embora destituída de autoconhecimento. Desfruta do céu sem o compreender. Para compreender, precisa primeiro ter esquecido e, depois, lembrado; para amar, precisa primeiro ter perdido e, depois, reconquistado. Somente pela dor e a queda pode vir a conhecer e compreender. Trágica e profunda a queda, tão diversa da queda literal que temos na bíblia pueril!
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