terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Páscoa negra

Minha homenagem à alegria da Páscoa. Não canto a festa do comércio, nem o prazer do chocolate, e tampouco seu significado religioso. Canto às crianças escravizadas ao pé dos cacaueiros, que têm a infância roubada para cultivar a matéria-prima dos ovos de páscoa. 40% de todo o cacau do mundo é produzido na Costa do Marfim, sendo que a maioria da produção está alicerçada sobre a base do trabalho escravo e infantil. Isso a Nestlé e cia não divulga na embalagem dos seus produtos.

A páscoa negra

Pende no galho a dourada fruta
Colhem-na mãos puras e cândidas
Primaveris, senão calosas e brutas
Tolhem-lhe a única infância
Na lida daquela diuturna luta
Sem tempo para ser criança
Mãos que trabalham no campo
Antes usadas em alentadas brincadeiras
Noutras terras ficaram os pais
Não têm quem possa chamar por família
Dela, fazem as vezes o capataz
Mal saíra dos cueiros
E fora escravizada ao pé do cacaueiro
De criança nada mais lhe resta
As mãos que corriam o pega-pega
Hoje manuseiam facões amolados
Tão novas e tão crispadas
Essas mãos são já as de um velho cansado
Não servem para amar e não dão afago
São mãos tão-somente de trabalhar
Que homens inescrupulosos compraram
Assim como se compra uma vaca ou um bode
Fazendo da inocência um meio de trabalho
Instrumento descartável e solitário
Vai gastar-se depressa
E depressa outras virão substituí-las
Mãos para o trabalho é o que não falta
Nessa África explorada e oprimida
Será que essas crianças escravizadas
Suspeitam da alegria que suscitam
Nas crianças ricas de além-mar
Brancas e bem nutridas
Também tão inocentes e vestais
Que nada desconfiam da magia da Páscoa
De que a matéria-prima com que se fazem os sonhos
Trazem o sangue de meninas e meninos
De pés descalços e andrajos rotos
Se disso soubessem
Essas meninas e meninos gordos
Será que o chocolate ter-lhes-ia o mesmo gosto?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A locomotiva

É locomotiva a vida que passa
Traçada sobre longo trilho
Que a neblina esconde o sentido
Ora pesada, ela vagarosa se arrasta
Ora lépida, ligeira o caminho perpassa
Por sobre pontes, pradarias e pastos
A cada estação faz-se breve parada
Entre beijos e abraços
Uns desembarcam e se perdem na multidão
Vão sorridentes ou calados
Enquanto outros, em ritmo de viagem
Tomam o trem em direção a novas paragens
Onde, perto ou longe não se sabe
Encontrar-se-ão fortunas ou desditas
E lá se vai o trem novamente
Acenando a quem fica
“Mande cumprimentos e notícias!”
Ah, assim é a vida
Se é que me permistes a metáfora
Uma malha férrea a perder de vista
Entretecida de tristezas e alegrias
Encontros e despedidas
Resfolega a vagão das máquinas
Apita o apito da partida
“Todos abordo” um funcionário grita
Quem for ficar, fica
Quem for apear, apeie-se
Não sou eu o maquinista
Nem os passageiros
Nem aqueles alcunhados “surfistas”
Eu sou a própria locomotiva.